quarta-feira, 12 de maio de 2010

Zanoni Neves e o São Francisco

Acabo de receber um presente de alto nível, vindo de Belo Horizonte. Trata-se do livro "O Rio São Francisco - História, Navegação e Cultura", do professor e pesquisador piraporense Zanoni Neves, que teve a gentileza de me ofertá-lo. Há muito, ele se dedica a descobrir e explicar a história e a cultura do Velho Chico em múltiplos aspectos, e posso atestar, pelo que conheço de sua obra, que ele leva a sério a verdade científica, sem abandonar, como barranqueiro que é, o lado afetuoso em relação a tudo que o envolve.

O livro em questão é uma coletânea de artigos que o autor publicou em diversas revistas especializadas ou em jornais e revistas de ampla circulação, podendo se constituir em um ponto de partida para aqueles que queiram conhecer sua obra em maior profundidade. Embora sérios, seus escritos são perfeitamente assimiláveis por leitores sem familiaridade com os textos acadêmicos. Na verdade, é uma escrita agradável e apaixonante.

A edição da obra é da editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, onde pode ser adquirido. O endereço é rua Benjamin Constant,790, Cep 36015-400, Juiz de Fora-MG. Fone/fax: (32)3229-7645 e (32)3229-7646. O livro também pode ser encontrado em livrarias universitárias.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

A Casa do Careta


Carinhanha nos apresenta uma intrigante obra arquitetônica: a Casa do Careta. Um levantamento de bens culturais realizado pela Assembléia Legislativa de Minas Gerais tenta desvendar a história dessa preciosa e misteriosa construção:

"A edificação foi construída no século XVIII.

Segundo José Castor, teria se originado de uma rixa entre dois portugueses que residiam no local. Cada um construiu uma casa, tentando jocosamente mostrar a face do outro. Quando concluídas as obras, as duas caretas tinham o mesmo aspecto e se assemelhavam bastante aos dois contendores.

À parte a história local, a única das duas casas que restou encontra-se em bom estado de conservação. A fachada é majestosa, ornada com platibanda, e um rosto do português encima a parede frontal."


A Casa do Careta, que exerceu diversas funções ao longo do tempo, foi restaurada recentemente e hoje abriga a secretaria de Cultura de Carinhanha. Acho que aqui está um belo exemplo de revitalização de um bem cultural.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Crime no Pajeú

Pobre rio Pajeú! O matadouro municipal de Serra Talhada, terra de Lampião e do deputado Inocêncio Oliveira, que já foi presidente da Câmara dos Deputados mais de uma vez, está despejando naquele célebre afluente do São Francisco restos de oitocentos animais abatidos por semana. Nem é preciso falar o que isso significa para a cidade e o rio. Os leitores que usem sua imaginação. Será que fede?

Para quem ainda não se lembrou, o rio Pajeú é aquele mesmo da música de Luiz Gonzaga, que recebe as águas do riacho do Navio e "vai despejar no São Francisco".

terça-feira, 20 de abril de 2010

Carranca é arte, sim! O que acham, conterrâneos?


"Por preconceito ou má vontade, as carrancas brasileiras permaneceram muito tempo desprezadas no mundo da arte. Feitas por artistas populares, diletantes ou autodidatas, sofreram com os rótulos simplistas e a falta de visão dos próprios conterrâneos. Depois de uma longa luta por seu reconhecimento, levada a cabo graças a insistência de artistas nacionais, como Roberto Burle Marx, e estrangeiros, como o fotógrafo francês Marcel Gautherot, as esculturas ganharam espaço privilegiado no acervo dos mais importantes colecionadores do mundo. Escolhidas entre coleções do comendador português Joe Berardo e o galerista Jean Boghici pelo produtor cultural Romaric Büel, algumas das obras mais representativas do gênero, assinadas por carranqueiros como Agnaldo Manoel dos Santos, Afrânio Barca e Francisco Biquina dy Lafuente (popularmente conhecido como Guarany), voltam agora ao alcance do público na exposição O triunfo das carrancas, que abre nesta terça-feira no Centro Cultural dos Correios."

O texto acima é o primeiro parágrafo de uma matéria publicada hoje pelo Jornal do Brasil. As carrancas, que inicialmente tinham menos uma função decorativa do que utilitária - espantar os maus espíritos para proteção contra naufrágios - nas barcas do São Francisco, estão ganhando o status de obras de arte, como se vê. Nada mal, mas seria preferível que elas estivessem reunidas em algum museu na beira do Velho Chico, para que os barranqueiros e outros brasileiros pudessem apreciá-las à vontade.

Não podemos, porém, deixar de reconhecer que a valorização das carrancas deve-se principalmente ao esforço de pessoas de fora. Daí a necessidade de um esforço no sentido de fortacer a cultura da bacia do São Francisco, de uma forma que sua população possa se orgulhar do seu patrimônio.

Obs.: A foto acima mostra Guarany na sua oficina, em Santa Maria da Vitória.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

A chegada do aventureiro

Vindo de São Paulo, onde passou muitos anos trabalhando em cidades do interior, Ulisses desembarcou em Sítio do Mato e partiu para São Gonçalo, hoje Serra Dourada. De bolsos já completamente vazios, teve que sair à procura de alguém conhecido para pedir ajuda.

Deu sorte. Encontrou um conterrâneo que emprestou o dinheiro, quantia pequena mas suficiente para aguardar a chegada da missão de socorro que deveria vir de Cotegipe, onde moravam seus pais, Januária e Horácio. Jovelina, a dona da pensão Santa Cruz, mulher simpática e educada recebeu o viajante solitário de braços abertos, diante das recomendações de Tenório, o que emprestara o dinheiro.

- Fique tranqüila que o rapaz é de boa família.

O mesmo Tenório encarregou-se de levar a notícia da chegada de Ulisses, já que estava de partida para Cotegipe na madrugada do dia seguinte. A boa nova iria a cavalo, o transporte mais rápido naqueles tempos ininternéticos. Ora, Internet, de onde apareceu essa idéia? Será que estou delirando?

Tenório foi para a cama cedo, pouco depois do jantar, e Ulisses saiu a passear na noite de São Gonçalo. A escuridão era quebrada aqui e acolá por luzes que saíam das casas de calçadas altas, ainda poucas naquele tempo. Um barulho de conversa chamou sua atenção. Só podia ser uma bodega, pensou rápido, e não teve jeito: foi atraído pelo canto das sereias.

Dias depois, chegou a missão de resgate. Ao se inteirar da boa notícia, Januária não perdera tempo e passara a tomar as procidências para receber da melhor forma possível o filho pródigo. Era, talvez, o filho mais querido. Tinha o pavio curto, mas era cativante no relacionamento com os amigos, que se divertiam com seus chistes e histórias.

Numa tarde Ulisses viu chegar na pensão Santa Cruz um grupo de cavaleiros, logo identificados como provenientes de Cotegipe, tocando mulas com bruacas. Reconheceu alguns deles, como Chico Preto e Cambraia, mesmo tendo passado tanto tempo sem vê-los.

O comandante da tropa, Chico Preto, mal o esperou se aproximar e gritou:

- Ulisses, seu cabra safado, olha a comitiva que veio buscar você! Coisa boa é que não falta por aqui, dê só uma espiada nas bruacas. A véia caprichou.

Depois dos abraços e pilhérias, ele conferiu a carga das mulas: lingüiça pronta para assar, fritos de galinha e de porco, carne seca, paçoca feita no pilão, requeijão, queijo, rapadura, farinha, cambraia, manuê, doce de leite e de maracujá, bolo de mandioca e biscoitos diversos – peta, rachadinho, ginete, voador, amor-perfeito, queijadinha e outros mais. Quando viu o chouriço, doce preparado com sangue de porco, o rapaz não se conteve.

- Minha mãe querida... não se esqueceu de nada! – balbuciou emocionado com lágrimas nos olhos.

Na madrugada do dia seguinte, a tropa, já devidamente abastecida de conhaque e cachaça, tomou o caminho de volta, levando para Cotegipe o filho pródigo. Uma casa aqui, outra acolá, estrada sem movimento, muito mato, riacho e serra para atravessar. Era coisa pra uns três dias de viagem e muitas histórias. Cambraia recordava as estripulias de Ulisses em Cotegipe e esse respondia com as de São Paulo. Chico Preto ria junto com os outros membros da comitiva. Quando a noite se aproximava, procuravam alguma clareira na mata e improvisavam barracas galhos e varas, onde estendiam esteiras de tabua para se deitar. Depois, vinha a melhor parte. Com pedaços de pau recolhidos no mato, eles faziam uma fogueira, que servia para afastar o frio e assar espetos de carne e lingüiça. Ah, que cheiro bom! A cachaça e o conhaque eram acompanhamentos perfeitos para aquelas preciosidades culinárias do sertão, e nisso eles não economizavam. Ulisses se empanturrava com aquela lingüiça que só sua mãe sabia fazer. As onças andavam por perto, pois seus esturros chegavam bem altos ali na beira do fogo, e isso era pretexto para muitas histórias.

Numa tarde, do alto da serra, avistaram um aglomerado de casas que pareciam pequenos pontos no meio de um imenso vale ocupado por roças e matas. Era Cotegipe.

- Uma rodada de pinga com carne seca pra comemorar! – gritou Chico Preto ante o alarido da comitiva.

Beberam e comeram à vontade até chegarem ao destino por volta das cinco e meia da tarde. Quando apontou na entrada da única praça da cidade, a comitiva foi surpreendida pelos foguetes que estouravam na frente da casa de Januária e Horácio, onde um grande número de pessoas estava aglomerado.

- Viva Ulisses! – gritava a multidão.

- Meu filho! Preparei a galinha-ao-molho-pardo que você gosta! – exclamou Januária chorando ao abraçar Ulisses, que nada e tudo disse. Lágrimas nos olhos.

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Quarenta anos depois, Ulisses contava essa história a um grupo de rapazes e, ao terminar, um de seus sobrinhos entrou na conversa:

- Tio, fale sobre a emoção que você sentiu com aquela recepção tão acalorada, depois de ter passado tantos anos fora de sua terra.

O velho Ulisses coçou a cabeça, pensou por um instante e respondeu:

- Eu não me lembro de nada, meu filho, pois estava bêbado.

domingo, 11 de abril de 2010

O riacho de Cotegipe

De manhã, ele era das lavadeiras. Umas lavavam roupa, outras a tralha de copa e cozinha – panelas, copos, pratos, tachos, talheres, gamelas e colheres-de-pau. Ficava tudo limpinho, areado com perícia e disposição. Ajudava muito a sombra das mangueiras seculares, de copas enormes e fechadas, por onde era raro passar algum raio de sol. Não havia cerca em volta delas e ninguém reivindicava sua propriedade, embora todos soubessem que possuíam donos. Na prática, pertenciam à comunidade, que delas usava e abusava. Na sombra daquelas mangueiras, faziam-se piqueniques, descansava-se, namorava-se, brincava-se e até brigava-se. Elas tinhas raízes enormes, que serviam de cama e cadeira. Como nem tudo é perfeito, havia sempre o risco de uma manga despencar na cabeça de alguém.

Quando terminava a faina das lavadeiras, os meninos e rapazes começavam a tomar conta do riacho de Cotegipe, dando “saltos mortais” nos peraus, para desespero das mães, ou pescando em algum ponto mais tranquilo. Pelo menos os pescadores mais hábeis nunca voltavam para casa sem uma fieira de pequenos bagres, alguns currubangos, mandins, piaus e, quando a sorte era maior, uma traíra como troféu. Peixes pequenos, porque os maiores não se interessavam por aquele modesto fio d’água dos brejeiros, preferiam a água larga e profunda do rio Grande, afluente imenso do São Francisco. Os próprios meninos tratavam seu pescado para a farofa a ser compartilhada com os amigos. Uma festa!

No período da seca, o riacho diminuía mas não secava, a não ser quando algum agricultor atrevido barrava a água com açude para irrigar sua roça ou horta. Nesses momentos, o prefeito, pressionado por queixas de todos os lados, era forçado a tomar alguma providência, mesmo sabendo que o fora-da-lei lhe dava apoio político. Também pesava em sua consciência saber que muitas e muitas famílias dependiam daquele córrego para sobreviver. Sem infraestrutura, a cidade toda se servia do riacho para matar a sede, e os potes de barro eram abastecidos antes do nascer do sol, quando a água era mais limpa.

- O que é que eu faço, Otacílio? – bradava o chefe do executivo municipal, no auge do desespero, a um de seus amigos, homem despachado, conhecido na cidade pela coragem incomum.
- Esbandaia, seu prefeito, esbandaia! – respondia invariavelmente o destemido Otacílio, que acabou pegando o nome de Otacílio Esbandaia.

Quase sempre, o problema era resolvido na base da conversa, sem necessidade de “esbandaiar” o açude com violência.

De uns anos pra cá, o riacho de Cotegipe veio diminuindo, diminuindo... até sumir. No tempo das chuvas, a água reaparece e corre, às vezes, com certa abundância, dando a impressão de que tudo se normalizou. Mera ilusão, pois quando chega a seca seu leito se transforma em estrada de barro e areia, como naqueles rios do semiárido nordestino.

Até as enchentes ficaram diferentes. Por mais que chova, elas são pequenas, tímidas, incapazes de assustar a população, exceto os desprotegidos moradores da rua do Tamarindo, que parecem estar à mercê de todo tipo de sofrimento. Lá não conta, pois até mesmo uma cabeça-d’água mais volumosa pode causar inundação. Enchente de verdade já não existe. É comum ouvir dos moradores mais velhos relatos de cheias colossais, inesquecíveis, que chegavam a tomar partes da cidade e a levar consigo casas, cercas e animais. “A de 39 foi a maior”, afirma um, “grande foi a de 53”, diz outro, “igual à de 65 nunca houve”, garante mais outro. Longe de mim defender esse tipo de enchente, e o leitor já deve ter percebido que meu objetivo aqui é o de apenas fazer uma comparação.

O certo é que o riacho está mudado, para não dizer morto, embora ainda permaneça vivo dentre de mim e de muitas outras pessoas. Se pudesse, eu o pegaria com as mãos e o recolocaria inteiro em seu leito para correr garboso como nos velhos tempos. De preferência, sem enchentes violentas e destruidoras.

Espero ainda por um milagre.

"A gruta da Lapa, basílica natual, aberta na rocha, é a mais majestática do globo. Rivaliza com a gruta de Lourdes, na França. É mais imponente, respeitada até por incrédulos."

Professora Joana Camandaroba, 96 anos, no seu livro "Memórias da Dinda". Ela é filha de Utinga e mãe da cidade da Barra, onde vive. Viajou pelo mundo inteiro.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Simão Corneta, o pescador*

Conta-se que em Manga havia um pescador chamado Simão Corneta, homem pobre e pai de muitos filhos que não poucas vezes ficavam em casa, famintos, aguardando sua volta para comer o que ele porventura conseguisse pegar e trazer do rio. Certo dia Simão saiu para pescar. Juntou suas linhas e anzóis, arrumou as iscas na cumbuca própria, despediu-se dos filhos, fez o sinal da cruz, entrou na canoa e remou rio abaixo sem pressa, à procura de um bom lugar. Foi remando, remando, até que chegou na barra do rio Verde Grande, e lá encontrou outros pescadores que, como ele, também alimentavam o desejo de fisgar um surubim de bom tamanho. Mas apesar de terem se dedicado a essa empreitada nos três dias que haviam ficado para trás, esses homens continuavam a zero na pescaria, sem, no entanto, se desesperançarem.

Simão era um deles, e por isso ali ficou durante três dias completos, paciente, perseverante, mesmo não sentindo na linha nenhum puxão que pudesse animá-lo e recompensá-lo pela tediosa vigília. Mas no quarto dia, assim que o sol esquentou, ele resolveu descansar um pouco, e para isso desceu da canoa e foi até à cabana de um velho pescador que morava não muito longe dali. Lá chegando, deitou-se em um canto da sala e adormeceu profundamente. Horas depois, já acordado, mas ainda de olhos fechados, ouviu quando a mulher do dono da casa perguntou ao marido, em voz baixa, se havia explicação para a má sorte do adormecido, e este lhe respondeu que tudo se devia ao fato do moço não conhecer os segredos do rio. Ela então pediu que o velho pescador os revelasse ao rapaz, mas o homem não só se recusou a fazê-lo por considerar que tudo era muito perigoso, como também explicou que sendo Simão Corneta ainda relativamente jovem e, portanto, impulsivo, certamente não resistiria aos tentadores encantos da Mãe d’Água se porventura lhe fosse pedir seu beneplácito. Continuando, disse ele que a rainha das águas costumava aparecer à meia-noite em uma pedra lisa que ficava na primeira curva rio abaixo, pouco adiante dali, e que era preciso muita coragem para chegar lá, jogar para a dona do rio o fumo de que ela gostava, e fugir o mais depressa possível, para não ser apanhado pela devoradora de homens.

Conhecedor do segredo, Simão fingiu então que acordava, levantou-se sem pressa, aceitou o peixe com pirão que a dona da cada lhe ofereceu, despediu-se do casal que o recebera, voltou para a canoa e tratou de remar até a curva do rio a que o velho pescador se referira. Nesse momento a lua clareou o rio de forma exuberante, transformando-o em uma avenida prateada, e pouco tempo depois, quando chegou a meia-noite, um vento forte soprou em direção contrária à das águas, arrepiando-as levemente, dois ou três galos cantaram alvoroçados em algum lugar daquelas paragens, o rumor de animais que se aproximavam passou a ser ouvido com nitidez cada vez maior, sem que fosse possível precisar de que direção eles vinham, e Simão, que a tudo percebia, não conseguia entender o que estava acontecendo.

Foi aí que uma casa branca como o algodão apareceu na superfície do rio surgida do nada, sem qualquer aviso, e era uma casa bonita, com o telhado coberto por escamas de peixe, as janelas trabalhadas em ouro reluzente, as paredes feitas de prata, e de dentro dela saiu a Mãe d’Água caminhando majestosa em direção à pedra lisa onde se sentou despreocupada, passando em seguida a pentear seus longos cabelos com um pente enfeitado com inúmeros diamantes que refletiam a luz da lua em todas as direções. Simão quedou-se boquiaberto, admirando aquela beleza deslumbrante, e assim se passaram muitos minutos, até que a rainha do rio colocou o pente de lado, inclinou a cabeça para diante e pareceu adormecer ao embalo de uma brisa suave que passara a correr com delicado assobio por entre a vegetação da margem, como se estivesse executando uma pequena sinfonia.

Foi então que Simão Corneta resolveu se aproximar, decidido a levar o pente com ele. Chegou à pedra lisa como o gato sorrateiro faz quando quer apanhar a sua presa, mas assim que colocou a mão no pente a Mãe d’Água soltou um grito estridente, agarrou o pescador pelo braço, firmemente, entrou com ele em seu palacete maravilhoso, e de repente tudo mergulhou para o fundo das águas sem que na superfície ficasse qualquer vestígio do que tinha acontecido.

* História contada por Fernando Dannemann. Publicada em http://www.fernandodannemann.recantodasletras.com.br.

sábado, 3 de abril de 2010

Hora de criar juízo

"Segundo o ministério (do Meio Ambiente), até 2008 foi desmatada 47,84% da área originária do Cerrado, que representa 24% do território brasileiro. E, de 2002 a 2008, a taxa de desmatamento nesse bioma significou o triplo da observada na Amazônia em 2008. Seriam, nesse período, 85.075 quilômetros quadrados desmatados no Cerrado, como escreveu neste jornal Lígia Formenti (17/3), com base em dados do ministério, que nos últimos meses os modificou mais de uma vez. E as causas do desmatamento estão, diz o ministério, na pecuária extensiva, no avanço da soja e da cana-de-açúcar e no uso de carvão vegetal principalmente por siderúrgicas."

Esse é um trecho de artigo do jornalista Washington Novaes, publicado ontem no jornal O Estado de São Paulo. Como podem ver, é uma situação alarmante, uma ameaça à própria sobrevivência do rio São Francisco.

O artigo completo pode ser encontrado em http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100402/not_imp532715,0.php.

A queda do barranco

Quase que o blogueiro foi levado para um remanso perigoso

Estava este blogueiro a olhar para o rio, distraído e embevecido com a paisagem, sendo acalentado por uma brisa aconchegante de final de tarde, quando deu por falta do chão sob seu corpo: o barranco em que estava sentado tinha desmoronado e lá se foi ele por água abaixo.

Parodiando uma conhecida história de certo fiscal do Banco do Brasil que escorregou com seu cavalo em uma ribanceira e foi salvo por uma conjunção de eventos favoráveis, posso garantir: era um barranco tão barranqueado que se não fosse um cipó preso a uma árvore da margem, a inexistência de piranhas naquele perau, o grande barulho da queda que atraiu a atenção de um pescador a pescar ali por perto e que veio acudir de imediato, e a providencial distância de um remanso perigoso a jusante, adeus, blogueiro.

Isto é uma brincadeira, leitor e leitora. Ou melhor, é o que aconteceu com o blogueiro, no sentido figurado. Explico: como diria nosso Conselheiro Acácio sertanejo, o barranqueiro Zé Graiada, estive hospitalizado "por motivos de saúde". Nada mais. Foram dezessete dias de internação para tratar da obstrução de uma das vias biliares e suas conseqüências. Parece que agora está tudo bem, graças a Deus.

A vida continua.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

O presente de Jesus*

No tempo antigo, Jesus reuniu seus doze apóstolos e presenteou-os, distribuindo entre eles as muitas riquezas da terra. Quando São Francisco chegou no céu, Jesus quis também presenteá-lo. Ofereceu ao santo de sua estima um grande rio, única riqueza ainda não distribuída, e disse-lhe: Este será o Rio de São Francisco!

O santo recebeu o presente com muita alegria e perguntou a Jesus se poderia fazer com ele o que quisesse. Satisfeito com a resposta afirmativa, percorreu toda a beira do rio e distribuiu bilhetes convocando o povo para reunir-se na Serra da Canastra. Todos reunidos, São Francisco abençoou o rio de seu nome e entregou-o aos pobres, para que habitassem as suas margens e dele pudessem viver. Ao final da reunião, muito solene, o santo proferiu esta sentença:

- Quem na beira do Rio São Francisco viver, rico não há de ser, de fome e sede não há de morrer e mais de uma camisa não há de ter!

* História contada por Deocleciano Francisco dos Santos, da Ilha Nova Esperança, no município de Manga. Publicada em http://www.religiosidadepopular.uaivip.com.br/aguapura.htm

segunda-feira, 29 de março de 2010

Recado do blogueiro

Leitores e leitoras,

Logo, logo, este blog voltará a se atualizar regularmente. Neste momento, o blogueiro está navegando por água dura. Explicando melhor, está com problemas de saúde.

Obrigado.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Petrolina: minha São Paulo do Sertão

Cida Pedrosa*

É a primeira vez que começo um artigo pelo título. Petrolina é uma referência tão grande de equilíbrio pessoal para mim que ao escrever sobre ela já sei, exatamente, o rumo que quero dar ao texto, portanto, natural que o título sobrevenha à narrativa. Fui morar e trabalhar em Petrolina em 1990, mês de abril. Experiência ímpar. Eu, sertaneja de Bodocó, retirante estudantil em Recife desde os idos de 1978, voltava para o sertão para continuar o ofício de advogada de sindicatos rurais, militância que seguia religiosamente e abraçara por convicção desde a formatura em direito no ano de 1987. Foi minha primeira experiência profissional no sertão e a volta às origens por um longo espaço de tempo.

Quando cheguei a Petrolina estava fugindo. Cabra marcada pra morrer, jurada de morte pelo poder latifundiário de Palmares, que já havia atentado contra minha vida duas vezes e com a sanha de terminar o serviço. Meus nervos estavam em frangalhos, não conseguia ficar de costa para uma porta, beber em bares de uma porta só, com todos os músculos afiados para o contra-ataque; Dizer que o coração estava em surto é eufemismo, imagem do cansaço era meu nome. Foi esta mulher que Petrolina recebeu e acolheu.

Durante o período de moradia em Palmares, a vida era tão urgente e a morte tão certa que parei de escrever. É como se a poesia não coubesse no meio de tanta pauleira. Um incidente colaborou com isso. Incendiaram minha biblioteca e junto com o acervo se foi um original de um livro meu. Inconformada com a perda, fiquei um tempão tentando reescrever os poemas sem conseguir; isso é um fantasma na minha produção. Volta e meia quero perseguir o verso escrito e perdido e ele escapa nas chamas da inconsciência.

A ida, a Petrolina, tinha um fim em si mesma. A missão era preservar minha vida, manter o afastamento da zona da mata, ficar o mais invisível possível e colaborar com a luta dos trabalhadores assalariados do Vale do São Francisco. Por questão de segurança voltei a usar o nome de nascença, Maria Aparecida Pedrosa Bezerra, deixando a alcunha de Cida Pedrosa nas águas do Capibaribe. Arregacei as mangas e fui me pondo de novo em pé para a luta, quando dei fé tinha pegado a dor pela crina, derrubado o medo no chão e a poesia nadava solta pelas águas do Velho Chico.

Fui conhecendo por dentro uma nova Petrolina; não a cidade vista pelos olhos de uma garota de 08 anos, com sua ponte que levantava e o vapor que passava no gostoso vai-vem; cheia de pés de goiaba nativa na beira do rio; sem a Barragem de Sobradinho e seus ribeirinhos com medo das cheias. E sim uma Petrolina poliglota, repleta de contradições como todas as grandes cidades. Uma terra-porto para sertanejos de outros sertões, cidadãos de outros estados e para uma leva de estrangeiros de todos os matizes.

Nova São Paulo, novo oeste para onde acorreram os que queriam mudar de vida, de sorte e de esperança. Com dificuldade de conviver com suas rezadeiras ancestrais e a exportação pesada de frutas. O samba de véio da Ilha Massangano e o axé da Bahia; A lenda do Negro D’Água e as lanchas velozes varando o Rio. Mas uma cidade que se recicla, está atenta e conta com o sentimento de pertença dos homens e mulheres que lá chegaram. Não sei se é mais petrolinense os que na terra nasceram ou os que chegaram e venceram.

Em pouco tempo voltei a escrever e contei com a parceria do meu compadre e poeta Davi Souza, com quem dividi mesas no Beco da Poesia, sonhos de luta e versos. Poeta de boa lavra e com uma preguiça danada de sistematizar e batalhar a publicação, como era de se esperar de um bom baiano de Euclides da Cunha e de quem guardo carinho e uns versos feitos pra mim:

tristes são os olhos
do poeta
quando a musa é de vidro
e sua poesia é de pedra

Em 1993, no meu aniversário de 30 anos, fizemos um sarau poético na Ilha do Rodeadouro, quando só existia um único bar, não havia transporte permanente e o acesso era previamente acertado com os ribeirinhos e suas canoas. Varamos a madrugada, acolhemos o sol com as mãos enquanto molhávamos os pés nas águas de vossa santidade - o São Francisco.

Parte dos textos do meu livro Cântaro foi escrita em Petrolina, entre uma descida e uma subida no Rio, entre uma palavra de ordem e uma cachaça Claudinor. Saí de lá em abril de 1995, de volta para Recife, refeita e com meu filho, Francisco, em baixo das asas.

Em janeiro deste ano. fiz, junto com minha família, uma viagem especial a Petrolina. Vínhamos de Bodocó, Crato e Juazeiro do Norte, cumprindo um itinerário poético e fazendo contato com os poetas de lá. Ao chegarmos em Petrolina, eu e meu companheiro Sennor Ramos procuramos o poeta Maurício Ferreira, coordenador do Espaço Cultural Rebuliço, em torno do qual fervilha a poética local. Ele nos recebeu com carinho e nos presenteou com uma edição da antologia poética Poetas em Rebuliço - Perfil Contemporâneo da Criação Poética no eixo Petrolina/Juazeiro - editada pela União Brasileira de Escritores - Núcleo de Petrolina - e nos indicou a professora Elisabet Gonçalves Moreira que havia organizado, no ano de 1995, a antologia: Poética Ribeirinha - Antologia Literária de Petrolina, editada pela UPE - Universidade de Pernambuco.

Dividimos com Maurício e Elisabet a nossa intenção de fazer uma mostra da poesia de Petrolina, dos nascidos e dos com militância literária local, para publicarmos na IINTERPOÉTICA, o que foi aceito pelos dois. Ao conversarmos com Elisabet, ela nos cedeu, em meio digital, as poesias da sua antologia e escreveu um texto para nosso: Especial Petrolina.

Nas duas antologias constam poemas do poeta Carlos Laerte, que militou comigo no Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco, até a sua volta para Petrolina e que continua escrevendo uma poética de poemas curtos e cheios de humanidades.
É sempre bom rever amigos, visitar paisagens conhecidas e principalmente poder contribuir com a divulgação dos que fazem ou fizeram a resistência cultural de uma terra cheia de sol, de vinho e cachaça, de umbu e uva, cujo norte é delimitado pelas curvas do seu rio. Para encerrar desejo a todos a proteção das carrancas e fecho com o poema Duas Faces de Maurício Ferreira:

Dois portos para o mesmo leito
Duas imagens para o mesmo sonho
Duas faces para o mesmo pranto...

Petrolina da passagem
Juazeiro da lordeza.
História singrada por vapores e barcas
Tangida pelo relho dos tropeiros
Manchada com o sangue dos cariris
Sentida no peito dos remeiros

Unidas e separadas
Por claras e turvas águas correntes
Por mitos e lendas irmanadas
Veios da mesma vertente...

Em redemoinhos perdidos no tempo
Naufragaram paquetes e sonhos
Traíram ventos e velas
Rasgaram o ventre das crenças.

* A autora é poeta nascida em Bodocó, sertão de Pernambuco, tendo vários livros publicados. Este texto integra a publicação virtual Interpoética (http://www.interpoetica.com).

quinta-feira, 11 de março de 2010

Velho Chico na poesia



Carrancas do rio São Francisco - Carlos Drummond de Andrade

As carrancas do Rio São Francisco
largaram suas proas e vieram
para um banco da Rua do Ouvidor.

O leão, o cavalo, o bicho estranho
deixam-se contemplar no rio seco,
entre cheques, recibos, duplicatas.

Já não defendem do Caboclo-d'água
o barqueiro e seu barco. Porventura
vêm proteger-nos de perigos outros
que não sabemos, ou contra os assaltos
desfecham seus poderes ancestrais
postados no salão, longe das águas?

Interrogo, perscruto, sem resposta,
as rudes caras, os lanhados lenhos
que tanta coisa viram, navegando
no leito cor de barro. O velho Chico
fartou-se deles, já não crê nos mitos
que a figura da proa conjurava,
ou contra os mitos já não há defesa
nos mascarões zoomórficos enormes?

Quisera ouvi-los; muitos contariam
de peixes e de homens, na difícil
aventura da vida dos remeiros.

O rio, esse caminho de canções,
de esperanças, de trocas, de naufrágios,
deixou nas carrancudas catadeiras
um traço fluvial de nostalgia,
e vejo, pela rua do Ouvidor,
singrando o asfalto, graves, silenciosos,
o leão, o cavalo, o bicho estranho...

quarta-feira, 10 de março de 2010

O Chico também tem música clássica

Outro dia publiquei aqui um desabafo de José Theodomiro de Araújo, o "Velho do Rio", sobre a "erosão cultural" do rio São Francisco. O estrago é grande, é verdade, mas nem tudo está perdido, mesmo sendo necessária uma revitalização cultural de grande porte, como já defendi por aqui.

Hoje uma informação de Traipu, cidade alagoana beiradeira, deixou-me contente. Veja o leitor um trecho do que foi divulgado pela Agência Alagoas, com o título "A música às margens do Velho Chico":

"Formada atualmente por 75 músicos, a Orquestra Lira Traipuense representa a mais fiel tradição musical do município de Traipu. Dessa localidade às margens do rio São Francisco já surgiram regentes conhecidos até mesmo nacionalmente. Toda essa trajetória erudita tem feito com que muitos jovens e até mesmo crianças sigam os mesmos exemplos. No comando do grupo, há 42 anos, encontra-se o maestro Antônio Basílio.

Para ilustrar a força da cultura musical erudita em Traipu, Antônio Basílio, um senhor de 70 anos de idade, lembra de músicos nascidos na cidade e que chegaram a despontar em várias regiões do Brasil. Um dos principais é o regente Florentino Dias, considerado 'uma das glórias da música erudita no Brasil'."

sábado, 6 de março de 2010



Escandalosa, mentirosa, criminosa, dissimulada. Estes são apenas alguns adjetivos que podemos atribuir à multinacional do veneno Monsanto, a mesma empresa que agora anda tirando onda de defensora do meio ambiente. Até parece...

O livro da jornalista francesa Marie-Monique Robin, "O mundo segundo a Monsanto", mostra exatamente quem é esse monstro que vem causando desastres ambientais mundo afora. Não deixe de ler, prezado leitor.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Silvos alarmantes

O monstro que desapareceu da gruta do Bom Jesus pode estar de volta sob nova aparência

Na gruta de Bom Jesus da Lapa, havia uma cobra-de-asas que aterrorizava a todos, mas, segundo Wilson Lins, o ilustre escritor de Pilão Arcado, aquele monstro demoníaco teria perdido as penas, ficando sem capacidade para voar, por obra e graça dos incontáveis ofícios de Nossa Senhora lá rezados. Aonde foi parar o tal bicho encantado, desaparecido e jamais visto?

Tenho cá meu palpite, querido leitor ou leitora. Analise os fatos com serenidade, veja os argumentos e as comparações, repasse depois todo o trajeto do meu raciocício, que não é infalível, e finalmente tire suas próprias conclusões. Reconheço que posso tropeçar na busca da verdade, risco a que está sujeita qualquer pessoa, da mais simples à mais sábia. Ah, isso eu tenho de reconhecer, pois neste mundão sem manual de instruções a certeza completa de qualquer coisa é produto muito raro. Mesmo assim, posso garantir e dou minha palavra de honra: tudo que está dito aqui é sincero.

Então, siga-me, leitor. Tendo perdido as penas e ficado impossibilitada de voar, não restaria outro caminho senão o de se arrastar entre rochas e buscar um abrigo onde as preces dos devotos não pudessem ser ouvidas. Pode ser também que por milagre, tenha deixado de existir, como muitos afirmam, mas não acredito nessa hipótese, pois os ofícios de Nossa Senhora eram rezados com a intenção de depenar o montro e não de destruí-lo. Este é o meu palpite: a serpente, ameaçada por tantas forças poderosas, meteu-se silenciosamente pelas gretas, e acabou escapando para os matos, indo parar não se sabe onde.

Muito tempo depois da fuga, a serpente pode ter recuperado seus poderes e, de forma dissimulada, passou a atacar suas vítimas. Tão grande seria o dom de iludir dessa filha do cramunhão que suas próprias vítimas se sentiriam beneficiadas com seus atos, mal sabendo que o suplício viria quando elas menos esperassem.

Pois bem, tenho observado que empresas de “alta tecnologia” estão oferecendo o paraíso aqui na terra, ao dizer para os agricultores e a população em geral que as sementes desenvolvidas em seus laboratórios, conhecidas como transgênicas, são milagrosas, pois produzem muito mais do que aquelas já conhecidas e não fazem mal algum. A principal delas, a Monsanto, depois de lançar seus venenos pelos campos, está agora se fazendo de santa e vive trombeteando uma inédita preocupação com a saúde ambiental do cerrado brasileiro. Como se diz por aí, “quando a esmola for grande, desconfie do santo”. Na minha opinião, leitor e leitora, essa tal Monsanto é uma cobra de asas disfarçada. Fiquem longe dela e não acreditem em seus programas de recuperação ambiental aparentemente bem-intencionados.

Não me interprete mal, prezado leitor, e nem tome minhas afirmações como definitivas sobre a nova aparência da cobra de asas. E digo mais: mesmo que a Monsanto seja outra coisa qualquer, acho que ela é tão ou mais aterrorizante que o diabólico ofídio alado de Bom Jesus da Lapa.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Erosão cultural

“Nós acabamos culturalmente. A erosão não é só física. Tem erosão cultural muito grande aí. Hoje você chega no São Francisco e tem dificuldade para comer um bode assado ou um dourado. Não se come mais uma carne desfiada na abóbora, não se come mais beiju. Agora é presunto no café da manhã, com melão, e não tem mais cuscuz com ovos. Só comida de europeu. Nós acabamos com a cultura do São Francisco”.

José Theodomiro de Araújo, o velho Theo, defensor incansável do Velho Chico, em palestra proferida em 2002, em Juazeiro.

terça-feira, 2 de março de 2010

Tardes sanfranciscanas

Era bom apoiar os cotovelos na balaustrada do cais da Barra, à sombra de uma mangubeira qualquer, e olhar para o rio São Francisco. Lá vinha ele com sua água barrenta, descendo e passando solene à nossa frente. Parecia ignorar o pobre rio Grande que chegava dos lados de Goiás com sua água límpida tentando se aconchegar no caudal poderoso que descia de Minas. Era como se o orgulhoso São Chico dissesse: “Não me misturo com qualquer um.” Birra besta e passageira, e a prova disso é que logo abaixo da cidade da Barra os dois se abraçavam e se fundiam num casamento perfeito, como se nada tivesse acontecido.

Eu gostava de ver a chegada e a partida das barcas e fofa-barrancos, que levantavam maretas, balançando as canoas atracadas na margem, e assustavam os passsarinhos. Melhor ainda era quando um grito malandro agitava a tarde, acabando com o longo silêncio da sesta e catalisando a animação na velha praça do mercado.

Tardes quentes e divertidas, repletas de gaiatice. Os doidos, os simples e os brejeiros eram alvos preferenciais dos gaiatos do cais, com sua capacidade infinita de criar apelidos hilariantes. Os bêbados assumiam, às vezes, o protagonismo do divertimento vespertino. As moças educadas que estudavam no colégio das freiras mudavam de caminho, os homens respeitáveis observavam carrancudos à distância e as senhoras mais velhas nem se aventuravam a andar por aquelas quebradas bravias. A praça e o jardim adjacente ficavam entregues à turba insana e irreverente.

Aquelas tardes ociosas, vadias e inúteis até hoje me sustentam.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Velho Chico na poesia



O São Francisco - Castro Alves

Longe, bem longe, dos cantões bravios,
Abrindo em alas os barrancos fundos;
Dourando o colo aos perenais estios,
Que o sol atira nos modernos mundos;
Por entre a grita dos ferais gentios,
Que acampam sob os palmeirais profundos;
Do São Francisco a soberana vaga
Léguas e léguas triunfante alaga!

Antemanhã, sob o sendal da bruma,
Ele vagia na vertente ainda,
— Linfa amorosa — co'a nitente espuma
Orlava o seio da Mineira linda;
Ao meio-dia, quando o solo fuma
Ao bafo morto de uma calma infinda,
Viram-no aos beijos, delamber demente
As rijas formas da cabocla ardente.

Insano amante! Não lhe mata o fogo
O deleite da indígena lasciva...
Vem — à busca talvez de desafogo
Bater à porta da Baiana altiva.
Nas verdes canas o gemente rogo
Ouve-lhe à tarde a tabaroa esquiva...
E talvez por magia à luz da lua
Mole a criança na caudal flutua.

Rio soberbo! Tuas águas turvas
Por isso descem lentas, peregrinas...
Adormeces ao pé das palmas curvas
Ao músico chorar das casuarinas!
Os poldros soltos — retesando as curvas, —
Ao galope agitando as longas crinas,
Rasgam alegres — relinchando aos ventos —
De tua vaga os turbilhões barrentos.

E tu desces, ó Nilo brasileiro,
As largas ipueiras alagando,
E das aves o coro alvissareiro
Vai nas balças teu hino modilhando!
Como pontes aéreas — do coqueiro
Os cipós escarlates se atirando,
De grinaldas em flor tecendo a arcada
São arcos triunfais de tua estrada!...

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Crime em Xiquexique

Estou estarrecido. Isso é o mínimo que posso dizer sobre o meu estado de espírito neste momento. Explico, leitores. É que acabei de ler no Blog Xiquexique (http://xiquexiquense.blogspot.com) a crônica de um crime cultural dos mais absurdos: a demolição do belo prédio que abrigava a Prefeitura Municipal, construído na última década do século XIX, para dar lugar a uma dessas construções modernosas e sem estilo que podem ser encontradas facilmente em qualquer periferia de cidade média ou grande. É certo que o fato ocorreu em 1963, mas não deixa de ser um desastre.

Que me perdoem os xiquexiquenses pelo desabafo. Sei que devem existir muitos outros casos semelhantes no vale do São Francisco, como os de Januária e Barra citados aí abaixo, mas nada justifica a barbaridade de destruir nosso patrimônio cultural que, em última instância, é o que nos faz sanfranciscanos e não outra coisa qualquer.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Sojismundo

"Soja, sojinha minha,
Cresce, cresce bonitinha,
Eu quero te ver um dia
Maior que uma melancia".

Recado do feiticeiro

Palavras do feiticeiro de São Romão:

"Aquele ou aquela que, em nome do progresso ou do dinheiro, demolir edificações de valor histórico terá a mesma sina do Romãozinho, ou seja, viver vagando pelo mundo sem ter um canto que lhe sirva de lar."

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Vida nova à casa velha

Devolver a vitalidade física ao rio São Francisco é tudo de bom, mas temos que pensar também em um novo tipo de revitalização.

Lendo o artigo “História e memória de Januária”*, de Ana Alaíde Barbosa Amaral, que trata de patrimônio histórico e identidade, fiquei a pensar sobre a necessidade de tratarmos o problema da revitalização do rio São Francisco de um campo de visão maior do que o trivial. Quando se fala em revitalização, a idéia geral parece ser simplesmente a de recuperar matas ciliares, desassorear o rio, controlar a erosão e realizar obras de saneamento básico. Os mais ousados chegam a indicar a necessidade de regular a até rever o modelo de atividades econômicas que têm impactos físicos e ecológicos sobre o Velho Chico, especialmente a agricultura de exportação que vem devastando o cerrado.

Tudo isso é imprescindível e urgente, mas parece que a dimensão cultural, tão importante quanto as outras, não está sendo lembrada. É até possível que a idéia de revitalização seja confundida com modernização, progresso, renovação e por aí afora, e que as populações ribeirinhas, seguindo a trilha das elites, reforcem o entendimento de que é preciso destruir tudo aquilo que se considera antigo para dar lugar a alguma novidade. Uma frase do artigo de Ana Alaíde sobre Januária ficou bem marcada em minha memória: “A sociedade local sempre entendeu que o progresso da cidade viria se fossem demolidas as ‘casas velhas’”. Ela cita a demolição de várias igrejas de valor histórico para a cidade e do Colégio São João, “tradicional estabelecimento de ensino, referência na região e no Estado (durante décadas nele vinham estudar alunos do interior da Bahia e até de Goiás)”.

Essa mentalidade não é exclusiva de Januária e nem é nova. Desde a segunda metade do século XIX, a sociedade do médio São Francisco vem sendo seduzida pela ideologia do progresso, que prega o descarte do antigo e sua substituição pelo novo. Lembro-me que na cidade da Barra um velho casarão secular, de importância histórica e arquitetônica inegável, teve que ir ao chão para que fosse construída uma “moderna” agência do Banco do Brasil. Exemplos como esses devem jorrar aos borbotões ao longo do Velho Chico. Alguma influência do positivismo? É possível, mas o mais provável é que, na falta de qualquer incentivo oficial para a preservação, prevaleça o interesse econômico que leva à destruição.

Diante dessa realidade, é necessário pensar numa revitalização cultural do rio São Francisco, não apenas no sentido de preservar os bens materiais e imateriais, o que não é pouca coisa, mas de dar nova vida a eles. Esse papel não é apenas do Estado e sim do povo do Velho Chico, que soube desenvolver uma das culturas mais fascinantes do Brasil, desde épocas anteriores ao seu descobrimento.

A arquitetura deu o mote para este artigo, mas há outras faces da rica cultura sanfranciscana que devem ser revitalizadas. Penso, por exemplo, na culinária com suas incontáveis expressões. Falando em culinária, não há como esquecer que os peixes estão diminuindo e que é preciso fazer com que eles voltem às nossas águas e passem novamente a alimentar as populações ribeirinhas. Os especialistas dizem que a causa principal do sumiço dos peixes são as barragens. Ao regularem o fluxo das águas, elas impedem que haja grandes enchentes e, portanto, a formação das lagoas onde a fauna ictiológica sempre se reproduziu e se multiplicou. Deve haver alguma solução para este problema.

As festas populares, a mitologia, a literatura oral e escrita, os costumes, a linguagem e tantas outras manifestações da cultura precisam também ser revitalizadas, no sentido de que devem ser estimuladas. A revitalização cultural, a meu ver, não é uma mera restauração do passado e sim um processo de construção em que passado e presente dialoguem. Nas relações entre a cultura local e as outras, acho que o melhor caminho é seguir o exemplo dos modernistas e adotar a antropofagia como método de assimilação. Trata-se de uma defesa para que não sejamos completamente engolidos pelo vendaval que vem de fora e, ao mesmo tempo, de uma estratégia de estímulo ao impulso criativo.

* O artigo pode ser encontrado em http://www.arquitextos.com.br/minhacidade/mc227/mc227.asp.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Cantiga dos remeiros*

Juazeiro da lordeza
Petrolina dos missais
Santana dos Cascais
Casa Nova da carestia
Sento Sé da nobreza
Remanso da valentia

Pilão Arcado da desgraça
Xiquexique dos bundão
Icatu cachaça podre
Barra só dá ladrão

Morpará casa de palha
Bom Jardim da rica flor
Urubu da Santa Cruz
Triste do povo da Lapa
Se não fosse o bom Jesus

Carinhanha é bonitinha
Malhada também é
Passa Manga e Morrinho
Paga imposto em Jacaré

Januária carreira grande
Corrente meia carreira
Bate o prego em Santa Rita
Pra cagar mole em Barreira

São Francisco da Arrelia
São Romão das feiticeiras
Extrema dos Cabeludo
Pirapora é da poeira

* Os remeiros e as prostitutas formavam a classe considerada a mais baixa da sociedade do São Francisco. Nos tempos em que as barcas não possuíam velas nem motores, eram eles que as movimentavam rio abaixo e rio acima, utilizando remos e varejões, para transportar mercadorias e passageiros.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

O Velho Chico sem chavões

Estou relendo o livro “Na carreira do rio São Francisco”, de Zanoni Neves. Com a naturalidade de um barranqueiro de Pirapora, cidade onde nasceu e passou grande parte de sua vida, ele navega pelas corredeiras da história, perpassa as croas da economia e mergulha nas profundezas da sociologia e da antropologia sanfranciscanas, sem perder de vista a limpidez do texto.

O título já é uma boa indicação do que está dentro do livro, pois remete às viagens que eram realizadas rio acima e rio abaixo, desde os tempos coloniais até a segunda metade do século XX, embora seu objetivo explícito seja analisar o trabalho e a sociabilidade dos vapozeiros, tripulantes dos barcos a vapor. Faz-nos lembrar a célebre cantiga dos remeiros, conhecida dos habitantes das margens do São Francisco, pelo menos dos mais velhos:

“Januária é carreira grande,
Corrente é meia carreira...”

Os remeiros, aqueles que empunhavam as varas na subida do rio e os remos na descida para impulsionar as antigas barcas, eram contratados por “viagem redonda” - itinerário de ida ao porto de destino e volta ao de origem. Para eles, “carreira inteira” era a viagem de Juazeiro a Pirapora, “carreira grande” a de Juazeiro a Januária, e “meia carreira” a de Juazeiro a Santa Maria da Vitória, no rio Corrente.

O livro de Zanoni faz uma viagem pela história do Velho Chico e procura definir e entender o papel de cada grupo social envolvido no que ele chama de Sistema Econômico Regional, o qual se integrava a sistemas mais amplos de alcance nacional e internacional. É aí que passamos a entender como um simples remeiro, que representava a classe mais baixa da sociedade sanfranciscana, ajudando a transportar mercadorias das mais diversas procedências, inclusive Manchester, na Inglaterra, contribuía para o desenvolvimento do Sistema Econômico Regional e, por conseqüência, dos outros sistemas que com ele interagiam.

O autor mostra também como o conhecimento e as tecnologias populares se somaram ao conhecimento dito científico ao longo da história do rio, e um dos diversos exemplos citados é o da navegação, em que práticas e saberes herdados dos índios acabaram por ser adotados nas barcas e nos vapores.

Nesse ponto, Neves demonstra como a ideologia do progresso, que impregnou os corações e mentes das elites regionais, já a partir do século XIX, orientou o crescimento econômico na bacia do São Francisco e exerceu influências no campo político. Em que pese o desprezo que os defensores da ideologia do progresso tinham pelas tecnologias tradicionais, elas continuaram a conviver com outras mais novas, tidas como símbolos de modernidade. Carros de bois e caminhões, carroças e locomotivas, canoas, paquetes, ajoujos, barcas e vapores, o velho e o novo andavam lado a lado e atuaram sinergicamente para dar vida ao Sistema Econômico Regional.

Um dos traços que marcou a ideologia do progresso foi o desprezo pelo meio ambiente, observa o autor. Como um dos exemplos, ele cita a introdução dos vapores na navegação. É verdade que eles trouxeram rapidez e aumento da capacidade de transporte de pessoas e cargas, porém, sendo embarcações que usavam a lenha como combustível, acabaram por provocar, em grande medida, a destruição das matas ciliares e, em conseqüência, o desbarrancamento e o assoreamento do rio.

O livro de Zanoni nos transporta pelo Velho Chico e nos permite acompanhar de perto a vida da tripulação, tanto na lida diária no interior do vapor, em todos os seus aspectos, quanto nas suas relações com as populações ribeirinhas. A categoria dos vapozeiros era dividida em três grupos: o “pessoal de bordo”, composto pelas tripulações, o “pessoal das oficinas” e o “pessoal dos escritórios”. Essas duas últimas compunham o grupo do “pessoal de terra”. As tripulações, que formavam o grupo do “pessoal de bordo”, eram distribuídas em diversos subgrupos, respeitando a divisão do trabalho.

Zanoni leva-nos também a uma viagem sentimental, mostrando o clima afetivo que envolvia vapores e habitantes da ribeira, ao ponto de cada uma dessas embarcações serem reconhecidas pelo som de seu apito. O próprio autor, filho de comandante de vapor, tendo viajado muitas vezes nessas embarcações, testemunhou fatos que comprovavam essa aproximação.

Nessa viagem histórica e sentimental, destacam-se as histórias de vida de quatro personagens fascinantes do velho rio: João Francisco de Souza, o prático ou piloto mais conhecido como João de Félix; Joaquim Borges das Neves, o comandante Joaquim Sereno para seus colegas; Antônio de Souza, o rigoroso comandante que mudou a vida de um ladrão; e Antônio Joaquim D´Almeida Roque, o maquinista que veio de Portugal.

Acredite, leitor: aquele que ler o livro de Zanoni Neves nunca mais verá o Rio São Francisco da mesma forma. Nestes tempos de massificações banais e repetições emburrecedoras de chavões e idéias insignificantes, a obra desse autor de Pirapora pode ser um ótimo remédio para nos curarmos do mal de desconhecimento sobre o rio mais querido e importante do Brasil.

Serviço
Título do livro: Na carreira do rio São Francisco
Autor: Zanoni Neves
Nº de páginas: 289
Editora Itatiaia (Belo Horizonte)

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Filosofia da célula cancerosa

Parece que alguma coisa começa a acontecer na nova ordem mundial e que os adoradores de uma planta só, entupidores e envenenadores de rios poderão enfrentar obstáculos mais sérios a suas práticas nocivas ao ambiente natural e, por conseqüência, à sociedade. Será que as pragas do feiticeiro de São Romão estão dando certo? Batam na madeira, porque os homens têm poder e não são de brincadeira.

Vejam abaixo alguns trechos de uma matéria publicada ontem no jornal Valor Econômico, pela colunista Cláudia Safatle.

"O Banco Central do Brasil começou a acordar para os danos sócio-ambientais que o crescimento econômico pode causar. 'Crescer por crescer é a filosofia da célula cancerosa', cita Sérgio Lima, consultor do presidente do BC, reproduzindo as palavras que ouviu, durante um seminário, do economista Ladislau Dowbor que, por sua vez, atribui a autoria do aforismo a um banner colocado por um grupo de estudantes na entrada de uma conferência sobre economia."
...
"Lima foi encarregado de elaborar a proposta de estruturação do Departamento de Responsabilidade Social do Banco Central, depois que um voto da diretoria da instituição determinou o ingresso desse tema no organograma do banco no ano passado. Ele concluiu o trabalho no segundo semestre de 2009. Falta, porém, a direção do BC tirar a ideia do papel com celeridade, colocá-la em prática e, mais do que isso, incorporar novos elementos de preocupação com a preservação do ambiente e a inclusão social às normas que regem a política de crédito no país."
...
"Na próxima semana, haverá um seminário no qual os estudos e sugestões elaborados até agora serão apresentados à diretoria e aos funcionários do BC. Uma das propostas será que os bancos, tanto públicos quanto privados, passem a incorporar nas suas áreas de análise de risco o perigo ambiental dos projetos que financiam."

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Dona Lurdes: carranqueira, cantora, poetisa, escritora... *

O Velho Chico é um rio rico em contradições, de muitas belezas e problemas, de riqueza e pobreza, de histórias e lendas. E dentro da imensidão de vidas ligadas às águas, uma, especialmente, merece ser contada. É a de Maria de Lurdes Gonçalves Lopes, 60 anos, ou dona Lurdes, como é conhecida em Pirapora-MG, habilidosa carranqueira, cantora, poetisa, escritora e amante das águas.As aventuras de dona Lurdes começaram aos 12 anos, quando um circo passou por sua cidade natal, Serrinha, perto de Salvador, na Bahia. “Eu fui lá, cantei, e o dono do circo gostou. Me chamavam de Cigarra Boêmia de Serrinha”, relembra. Para cantar, ela saía escondida de casa, pois sua família não aceitava a vida de artista, coisa imprópria para uma moça de família. A aventura durou um mês, até quando seu pai assistiu a um espetáculo. Embora tenha gostado da apresentação, ele e sua mãe a obrigaram a largar a recém começada carreira com uma surra de uma dúzia de palmatórias.

Mas dona Lurdes não era moça que aceitava ordens ou desistia de suas vontades. Por isso, continuou fugindo de casa até os 16 anos, para cantar, até conseguir mudar para Salvador, estudar música e participar como corista da Orquestra Azevedo. Nessa época, ela chegou até a cantar na Rádio Excelsior da Bahia.

Apresentando-se em boates e festas, a moça destemida conheceu várias pessoas, muitas importantes e influentes. Uma delas era o político baiano Waldir Pires, opositor à revolução e ao governo militar recém outorgado, uma influência nas idéias dela própria. Essa ligação com a esquerda, em uma época de violentas perseguições políticas, mudou sua vida: ela decidiu voltar escondida para Serrinha. “Eu tinha muito medo, principalmente pelo meu pai, que sustentava uma casa com tantos filhos. Tinha uns dois vizinhos na minha rua que sumiram e nunca mais voltaram”, conta, ainda assustada.

Logo depois da fuga, ela recebeu um telegrama anônimo, com instruções para se juntar a uma certa companhia teatral e seguir até Juazeiro. No caminho, o grupo embarcou em uma antiga barca a vapor que fazia o trajeto Pirapora-MG a Petrolina-PE, navegando pelo Rio São Francisco. Entretanto, todos os passos de dona Lurdes foram seguidos por um misterioso homem, sujeito desconhecido, sempre calado, carregando uma maleta preta.

Para a sorte de dona Lurdes, a barca, chamada São Francisco, tinha no comando um homem decidido e corajoso, o capitão Francisco Barroso, um antigo namorado. Quando o homem misterioso, ainda dentro do vapor, deu voz de prisão à contra-revolucionária, o capitão saiu em sua defesa.

“Barroso disse para ele: ‘Eu sou o capitão e daqui ela não sai. Quem vai se retirar é o senhor’. E então eu fiquei dentro do barco por mais cinco anos, com medo de ser presa”, conta dona Lurdes, que sofre até hoje de depressão e toma remédios controlados, devido ao pavor que sente dos tempos de repressão da ditadura.
Então, por cinco anos, ela ficou embarcada em barcos a vapor, cruzando para cima e para baixo o Velho Chico, levando mercadorias de Minas Gerais para Bahia e Pernambuco e vice-versa, descendo a terra sempre às escondidas, sempre ao lado de seu protetor, o comandante Barroso.

“Foi o tempo todo vendo as mesmas coisas. De olhos fechados, eu conhecia todas as curvas do rio”, conta, melancólica. Mas mesmo restrita às embarcações, dona Lurdes continuou cantando – se apresentava como Lurdinha Barroso -, aprendeu os rudimentos da arte da carranca e casou-se com o amor de sua vida, o capitão Barroso.
“Ele era 30 anos mais velho que eu, mas homem igual aquele não existe mais. Ele era pai, protetor, amante e marido”, lembra saudosa do companheiro, mas forte, sem derramar uma lágrima. Dona Lurdes conta que o velho capitão era um homem de muitas mulheres, com namorada ou família em cada porto que passava, mas abdicou de todos os outros amores por ela. “Antes de mim, tudo bem, mas depois que nós casamos, era só eu. Eu brigava com ele, e acabou largando todas as outras, vivia para mim, me enchia de presentes, me dava lingerie de renda e de seda”, afirma.

Barroso também foi o principal mecenas de dona Lurdes. Presenteou a esposa com os primeiros instrumentos para ela começar a esculpir carrancas e incentivou-a a aprimorar sua técnica. Levou para conhecer o mestre carranqueiro Guarani, que ao ver a novata esbravejou: “Não vou ensinar nada, não”. Mas Dona Lurdes aprendeu as técnicas do velho professor só de olhar.

Em 1997, capitão Barroso morreu, já com 86 anos, e dona Lurdes “quase foi também”. Mas hoje, para espantar a tristeza e a dor da perda, ela recorre a várias atividades sociais em que participa na comunidade, ao carinho dos filhos que teve com o marido – Francisco Walber, Francyslady, Charles, Teodoro Pereira Neto e Luana Lara Janaína – e ao artesanato de carrancas. Além disso, ainda ocupa seu tempo escrevendo suas memórias, mesmo “não sendo uma mulher de muita escrita”.

*Texto publicado inicialmente em Velhochico.net

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Dom Ricardo está certo

Gostei muito de um artigo publicado na semana passada em um jornal de Barreiras pelo bispo daquela cidade, d. Ricardo Weberberger, a propósito de um certo movimento a favor da criação de um determinado Estado do Rio São Francisco. Depois de observar que a região onde se estabeleceria a nova unidade da federação “ainda é politicamente fraca”, além de ser “social e economicamente marcada por grandes diferenças e desigualdades”, o bispo, demonstrando ótima pontaria, atinge o foco central do problema, ao perguntar: “Quem vai arcar com os custos do movimento político, de eleições? Não será o grande capital que vai definir candidaturas políticas?”

Em seu comedimento de líder religioso, d. Ricardo não dá nomes aos bois, mas revela uma aguda percepção do que ocorre atualmente na região que querem transformar em Estado. Peço ao prezado leitor que analise com serenidade o raciocínio que me levou a concordar com o bispo. Então vejamos. Caso seja obedecida a demarcação proposta pelo parlamentar pernambucano Gonzaga Patriota, que apresentou projeto de lei na Câmara dos Deputados, o tal Estado compreenderia a parte do território baiano localizada à esquerda do rio São Francisco, justamente a área dominada por fortes grupos econômicos dedicados à monocultura de exportação. Não será esse o grande capital a que d. Ricardo se refere?

O certo é que nenhuma outra força regional está perto de se equiparar a esses grupos no campo da economia, o que significa não estar apta, em termos financeiros, a disputar com eles a conquista do poder político. Em outras palavras, concretizando-se o novo Estado, suas instituições cairiam completamente nas mãos dos grandes produtores de soja e algumas outras commodities agrícolas, de forma a aumentar exponencialmente a capacidade desses grupos para buscar lucros e vantagens. Esse seria o caminho mais curto para se atingir a destruição completa do cerrado, acompanhada do entupimento e do envenenamento dos rios.

Sabemos que os tais grupos são os principais responsáveis pela destruição do cerrado no oeste da Bahia e estão substituindo uma riquíssima biodiversidade por plantações de soja, algodão e café, além de usarem a água dos rios de forma irresponsável e contribuírem fortemente para seu assoreamento. Para completar o desastre, os mananciais são envenenados por toneladas de agrotóxicos que os poderosos agricultores despejam em suas lavouras. Se isso está acontecendo sem que eles ainda dominem a máquina do Estado, podemos imaginar o que nos espera quando tomarem o poder político.

Ninguém duvida de que eles têm como meta principal o lucro, pois isso é da natureza do capitalismo, mas, como sempre ocorre, esses grupos tentam se legitimar hipocritamente perante a sociedade. Como estratégia de legitimação, trazem à mesa o cardápio mais do que conhecido de justificativas: promoção do desenvolvimento, geração de empregos e obtenção de divisas. Acredite quem quiser.

Na verdade, o desenvolvimento alegado não passa de crescimento econômico puro e simples, sem qualquer preocupação social e ambiental. Para usar um termo da moda, é um crescimento insustentável. A geração de emprego é insignificante, considerando-se os prejuízos debitados na conta da natureza e o enorme contingente de mão-de-obra que vaga por nossas cidades. Tratando-se de uma agricultura intensiva no uso de máquinas, o que resta para o trabalho humano é muito pouco. A obtenção de divisas é real, mas a forma de obtê-las não é das melhores. Divisas podem ser conseguidas das mais diversas formas, e é uma pena que nosso país dependa tanto da exportação de commodities agrícolas para equilibrar sua balança comercial. Esse fato só revela o nosso atraso em termos educacionais e de desenvolvimento científico e tecnológico.

Nós do povo, que só provamos do fel da monocultura de exportação, não podemos ingenuamente aceitar que nos enganem com argumentos aparentemente corretos ou com apelos sentimentalistas e falsos a respeito do tal Estado do São Francisco. Há até quem sustente que o oeste baiano em nada se identifica culturalmente com as outras regiões da Bahia e existe quem recorra, para defender essa tese, ao fato histórico de que as terras situadas na margem esquerda do rio São Francisco pertenceram a Pernambuco até 1824.

Tomando-se a questão cultural como critério para a formação do novo Estado, então deveríamos respeitar todo o território do médio São Francisco e não apenas a área baiana à esquerda do grande rio, pois o que existe de específico por essas bandas é uma cultura sanfranciscana, moldada em séculos de isolamento como bem mostrou Wilson Lins. Além disso, se formos observar o critério cultural para justificar a idéia separatista, teremos forçosamente de admitir que o Brasil deve se dividir para formar vários países, considerando-se as notórias diferenças entre suas regiões. Será que os brasileiros concordam com isso?

Não podemos nos iludir com argumentos oportunistas ou ingênuos, assim como não devemos nos comportar como a boiada que segue apenas um boi, não importando o rumo tomado. Para reflexão, replico aqui uma das frases do artigo de d. Ricardo: “Um novo Estado deve ter uma forte base ética que coloque no centro a pessoa e o bem comum e não a economia”.

Será que Nazário morreu?

- Nazário morreeeu!
- O couro é meeeeu!

Será se alguém ainda se lembra do Nazário? A noite de quarta-feira de cinzas sempre foi dedicada a essa estranha personagem em muitas cidades da bacia do São Francisco. Por onde anda ele? Quem souber, que me conte.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Perfil do mestre João de Félix

Zanoni Neves*

O Sr. João Francisco de Souza (João de Félix) nasceu em Santana de Sobradinho (BA) em maio de 1913. Conheceu a aspereza do trabalho no campo desde a infância. Seu pai, Sr. Félix Francisco de Souza, viajava nas barcas de figura, deixando sua roça sob os cuidados da esposa e dos cinco filhos, todos homens. Os pequenos cultivos de mandioca, feijão, milho, abóbora, melancia, batata e arroz possibilitavam a sobrevivência digna da família. No calejar do peito e das mãos, o Sr. Félix ganhava o pequeno salário de embarcadiço para comprar outros produtos não produzidos no campo, dos quais a família necessitava: o querosene, o calçado, as roupas, o medicamento etc.

Ainda na adolescência, o jovem João Francisco de Souza abraçou a profissão do pai, tornando-se remeiro. Herdou dele também o patrônimo Félix, tornando-se mais conhecido entre os fluviários como João de Félix. Os quatro irmãos também ocuparam as coxias das barcas. Inicialmente, João Francisco trabalhou em pequenas embarcações de propriedade do seu tio, Sr. Eugênio Carioca, viajando para Remanso, Xique-Xique e Barra (BA). Na primeira metade dos anos 1930, já estava engajado em barcas maiores que partiam de Juazeiro com destino a Barreiras, no rio Grande, e a Santa Maria da Vitória, no rio Corrente – ambas no Estado da Bahia.

A faina diária nas barcas começava ao nascer do dia com os primeiros raios de sol ou, até mesmo, de madrugada, e terminava à tarde quando o sol desaparecia no horizonte. O “varejão”, ou seja, a vara utilizada para impulsionar as embarcações nas viagens rio acima, provocava ferimentos no tórax dos remeiros. Em entrevista, o Sr. João Francisco mostrou a marca que esse instrumento de trabalho deixou em seu peito – passados 50 anos desde que havia abandonado o trabalho nas referidas barcas.

O Sr. Benvindo Francisco de Souza, o irmão mais velho, foi o primeiro a deixar o trabalho de “arrastar vara” nas barcas de figura, tornando-se marinheiro de vapor. Por sua iniciativa, os demais irmãos seguiram-lhe o exemplo. Em 1940, João Francisco começou a viajar a bordo dos “gaiolas” da CIVP – Companhia Indústria e Viação de Pirapora, exercendo a função de marinheiro, que no Médio São Francisco implicava trabalhar na estiva, entre outros encargos. Mais tarde, tornou-se praticante de prático, ou seja, aprendiz de timoneiro. Alguns anos depois, alcançou o cargo de prático ou mestre conforme a linguagem dos embarcadiços – ou piloto na terminologia das empresas de navegação e da Capitania Fluvial dos Portos. Em 1969, aposentou-se na FRANAVE – Companhia de Navegação do São Francisco como piloto fluvial. Dos cinco irmãos, quatro foram timoneiros nos vapores do Velho Chico. Rafael de Souza, filho do primeiro casamento do Sr. João Francisco, também pertenceu à classe dos fluviários, exercendo a profissão de maquinista dos vapores.

Depois de se aposentar, o Sr. João Francisco de Souza casou-se em segundas núpcias com a Sra. Guiomarzina Rodrigues Soares que foi cozinheira nos vapores da FRANAVE.

Depois de viajar muitos anos em companhia do Sr. João Francisco de Souza, o Comandante Joaquim Borges das Neves dizia-nos em entrevista: “No quarto do João, eu dormia tranqüilo!” Esta frase significa que, no turno de trabalho do Mestre João de Félix, o vapor navegava sem risco de colisões em pedras e troncos.

Durante o meu trabalho de pesquisa sobre navegação no Rio São Francisco, o Sr. João foi o principal informante.

* O autor nasceu em Pirapora e é bacharel em Ciências Sociais pela UFMG, pós-graduado em Sociologia pela PUC-MG e mestre em Antropologia Social pela Unicamp, tendo publicado diversos trabalhos sobre o Velho Chico, entre os quais o livro "Na Carreira do Rio São Francisco".

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Desmatamento de mulheres

A velha beata parou em minha frente, no meio da rua, em Bom Jesus da Lapa, para comentar a notícia que tinha recebido de um padre. Sorriu, levantou as mãos para o céu e falou em voz alta, de forma que as pessoas mais próximas puderam ouvir:

- O Bom Jesus é quem nos protege, ele e a virgem Maria! Agora elas vão ver. Estou de alma lavada.

Fiquei curioso. Havia como não ficar?

- Do que está falando, minha velha?

Essas beatas são muito pacientes, e não seria eu que mudaria seu jeito de ser e a obrigaria a modificar o roteiro de uma conversa apenas porque eu estava apressado. Aquela mulher fora treinada em anos e anos de rosário, rezando seguidamente centenas de ave-marias com intercalações periódicas de pai-nossos, como se estivesse repetindo um mantra oriental.

- Meu filho – continuou calmamente a velha mulher – o padre José não é homem de mentira e foi ele quem me contou esta história.

Tive que me acalmar e controlar a curiosidade para não ser grosseiro com uma pessoa tão amável. Peço que o leitor também tenha paciência. Esperei em silêncio e ela continuou:

- Pois hoje mesmo o padre veio me dizer que aquelas vadias da beira do rio...

- As raparigas! – interrompeu um gaiato que ouvia da calçada do bar.

- Aquelas raparigas sem-vergonha – retomou a beata – elas vão ter que ficar bem longe da gruta, graças ao Bom Jesus e Nossa Senhora. Padre José me disse que o bispo conversou com o prefeito e ele vai botar a polícia no pé dessas perdidas. Vão embora no chicote.

- As bichinhas são tão boas! – gritou outro gaiato.

- É porque você é um perdido igual a elas, aquelas cobras de asa – respondeu a velha demontrando revolta na voz.

No meu íntimo, eu considerava aquilo uma violência com as pobres prostitutas. O local escolhido por elas para exercer a profissão - as proximidades da gruta do Bom Jesus - não era certamente o mais adequado do ponto de vista da igreja, mas isso não dava direito ao bispo de escorraçá-las como animais. Além disso, elas também tinham lá suas razões, pois precisavam trabalhar para sustentar os filhos e aquele era o ponto de maior movimento, para onde acorriam romeiros e turistas. Não é assim que funcionam os negócios? Enquanto estava imerso nesses pensamentos, fui surpreendido por uma pergunta inesperada da beata:

- Você concorda comigo, meu filho?

Foi o suficiente para eu ficar zonzo e suar frio. Ainda mais que uma numerosa platéia assistia ao espetáculo das calçadas próximas em frente aos bares. A mulher fixou aqueles olhos profundos e expressivos nos meus e perguntou incisivamente:

- Concorda ou não concorda? Ficou mudo? Seja homem!

O suor descia pela testa e eu não tinha como disfarçar. A beata certamente havia percebido minha fraqueza, pois me olhava da cabeça aos pés com ar de desprezo, fazendo-me sentir um zé-ninguém ali na capital da romaria, a meca católica do rio São Francisco. Meus pensamentos e idéias estavam bloqueados e eu não sabia o que fazer. Foi aí que alguém gritou, inesperadamente e em tom de deboche, de uma das calçadas:

- O bispo vai fazer desmatamento de mulher!

A onda de gritos, assovios e gargalhadas que inundou a rua acabou por atrair muita gente, até os turistas e romeiros que tinham ido para a festa do Bom Jesus. Como eu não queria ser “desmatado” pela rigidez moral da beata, não perdi aquela oportunidade e sumi na multidão. Achei melhor fazer uma visita à gruta do Bom Jesus.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Dossiê da UnB revela situação do cerrado

Um dossiê abrangente sobre o cerrado brasileiro, que merece ser lido com atenção, foi publicado na edição nº 2 – setembro e outubro de 2009 - da revista Darcy, publicação da Universidade de Brasília (UnB) especializada em jornalismo científico e cultural.

Uma das revelações do dossiê é a informação de que a velocidade de desmatamento no cerrado é duas vezes maior do que na Amazônia, de acordo com dados divulgados pelo ministério do Meio Ambiente em setembro último. Foi constatado que metade da área original daquele bioma foi desmatada, o que representa quase um milhão de quilômetros quadrados, valor correspondente a 1/8 de todo o território nacional. “Agora, as árvores dão lugar a plantações de soja e pastos para gado. A madeira delas vira carvão para siderúrgicas”, constata o dossiê. O Maranhão e a Bahia lideram o ranking dos estados que mais destruíram o cerrado nos últimos anos.

O documento declara que “o modelo de preservação baseado em unidades de conservação está esgotado”, pois não garantem a sobrevivência da fauna e da flora nativas, conforme pesquisa da UnB. “Criadas para proteger a savana com a maior biodiversidade do mundo, as áreas de conservação estão sitiadas por fazendas e cidades”, afirma.

Nem só de notícias ruins é composto o dossiê. Nele são encontrados relatos de experiências bem-sucedidas que se basearam na exploração sustentável do Cerrado. É o caso da Associação dos Produtores e Beneficiadores de Frutos do Cerrado (Benfruc), estabelecida na cidade goiana de Damianópolis, que produz geléias de cagaita, óleos, farinha de jatobá e farinha de pequi, além de polpa para a produção de sorvete.

Leia o dossiê completo em http://www.revistadarcy.unb.br/wp-content/uploads/2009/11/darcy02.pdf

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Poeta sabe das coisas

“Nem tudo que é torto é errado. Veja as pernas do Garrincha e as árvores do Cerrado”.

Nicholas Behr - Poeta de Brasília

sábado, 6 de fevereiro de 2010

O saxofonista misterioso

Tinha nome de cantor popular, e artista popular ele era também. Apesar das roupas velhas e dos cabelos desgrenhados, era charmoso e carismático em sua personalidade forte, à beira do autoritarismo, uma espécie um Beethoven sertanejo. Quem mais temia Roberto Braga eram as crianças, mas eram elas também quem mais se divertia com ele. Não sei se por brincadeira ou outra razão qualquer, quando um menino se aproximava, o estranho homem pressionava os lobos das orelhas com os dedos indicadores e enviava-lhe uma cusparada quase sempre certeira.

Nas primeiras vezes que isso aconteceu, houve protestos e revolta, tanto de pais quanto de filhos. Até Tico, o louco declarado da cidade, que atirava pedras e falava palavrões não importando o ambiente, quis tirar satisfações com o desrespeitoso personagem. “Esse doido não tem respeito nem pelas crianças”, bradou Tico numa da vezes que Roberto Braga cuspiu em um menino. Ele tinha acabado de jogar uma pedra em um garotinho que o provocara. O artista não quis conversa e voltou rapidamente para dentro do bar onde tomava cerveja com amigos.

Aos poucos, as pessoas foram se acostumando com aquela figura exótica que, apesar do comportamento inusitado, não demonstrava sentir raiva ou ódio. Não, Roberto Braga não era rabujento ou intolerante, até denotava simpatia sutilmente, e foi isso que as crianças perceberam em pouco tempo, pois passaram a ver nele uma oportunidade para brincadeiras sem correr riscos, a não ser o de levarem um golpe de cuspe no rosto. Eu acho que ele também se divertia muito com tudo aquilo.

A diversão que Roberto Braga levava para os adultos também não era pequena. Foi o maior saxofonista que eu conheci, não devendo nada a Domingos Pecci ou Luiz Americano, nomes que tinham grande prestígio naquelas bandas da bacia do rio São Francisco. Ali mesmo no bar, quando ele desencaixotava as primeiras notas do seu sax dourado, uma pequena multidão se reunia em silêncio para ouvir. Era um som infernal e celestial, demoníaco e divino, emocionante e confortador, saudoso e repleto de esperança. Só um grande artista ou um santo são capazes de fazer um milagre daquele.

Roberto Braga não era santo, mas era o próprio mistério. Ninguém podia afirmar com certeza de onde ele viera e porque fora parar ali. Desculpe, leitor, a expressão “parar ali” não é propriamente verdadeira, já que nosso artista não parava em lugar algum, vivendo como um andarilho pelos caminhos do São Francisco. Um dia, na cidade da Barra, outro em Barreiras, depois Ibotirama, seguindo para Paratinga no rumo de Bom Jesus da Lapa. Assim ele levava a vida.

Diziam que ele nascera em Casa Nova, muito antes dessa cidade submergir no lago de Sobradinho, e era filho de uma família importante, mas nada está comprovado. Em respeito ao meu compromisso com a verdade, não vou colocar minha mão no fogo por essa história. Falavam também que lá mesmo em Casa Nova ele viveu uma paixão muito forte pela moça mais bonita do lugar e acabou sendo traído horrorosamente pelo rapaz que mais odiava. Essa seria a razão de ter saído a vagar sem destino pelo mundo. De novo, nada posso garantir.

Outro mistério ainda não resolvido é o que envolve sua genialidade artística. Ninguém sabe ao certo onde aprendeu a tocar e, muito menos, como adquiriu tão grande habilidade no sax. Alguns dizem que começou em Casa Nova e depois foi se aperfeiçoar em Juazeiro, havendo até aqueles que juram ter o grande artista passado por uma importante escola de música de São Paulo. Para contradizer essa versão, não falta quem garanta que Roberto Braga fez um pacto com o Romãozinho, do qual ninguém conhece os detalhes, para se transformar no grande músico que foi. Peço aos distintos leitores que me entendam e vejam que eu estou apenas relatando o que ouvi em diversos lugares. Não descarto a existência de outras versões que não conheço. Pode ser que em Carinhanha a história seja uma, em São Francisco outra, em São Romão mais outra e assim por diante.

Nunca mais ouvi falar de Roberto Braga. Assim como apareceu, sumiu coberto de mistério. O som do seu sax, tal como o vapor encantado, que aparece e desaparece na noite do rio, ressurge em minha memória quando eu menos espero.

O vale do São Francisco é assim mesmo, cheio de milagres e encantamentos.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Recado aos prefeitos

Palavras do feiticeiro de São Romão:

"O prefeito que não realizar obras de saneamento em seu município, deixando que o esgoto sem tratamento e o lixo sejam atirados nos rios e riachos, vai beber a água que o diabo sujou. Toda vez que encher um copo d´água para tomar, o tal prefeito verá boiando nele vermes e lodo. Esta previsão vale também para aqueles vereadores que forem omissos ou apoiarem o comportamento desses prefeitos".

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Recado do feiticeiro

O feiticeiro de São Romão ouviu por aí que os ruralistas estão se preparando para afrouxar as regras ambientais e assim poderem aumentar a destruição das florestas e rios. Ele manda o seguinte recado:
“Estou fazendo uma mandinga. Esse povo que vive de arrancar muita planta pra colocar no lugar uma planta só vai morrer como doido. A doidura deles é ficar repetindo as mesmas palavras, porque não conseguem se lembrar das outras."

Batalha ambiental no Congresso*

Bancada ruralista organiza-se para passar com trator por cima dos ambientalistas durante o primeiro semestre no Congresso. Ambientalistas organizam-se para barrar o ‘tratoraço’

Renata Camargo

Sob protesto de ambientalistas, os ruralistas prometem acelerar no Congresso mudanças profundas na legislação ambiental. Certa de que o ritmo do Congresso este ano será menor por causa das eleições, a bancada ligada ao setor agropecuário passou o período de recesso organizando-se para passar como uma patrulha de tratores por cima dos ambientalistas. Eles querem se aproveitar do fato de que já se organizaram previamente para, em 90 dias, alterar pontos polêmicos do Código Florestal. Será, segundo os próprios ruralistas, um ritmo de mudanças a “toque de caixa”.

Os ruralistas querem afrouxar regras do Código Florestal que, a despeito de proteger o ambiente, na sua opinião impedem a produção. Eles querem, por exemplo, retirar da lei a exigência de recomposição das áreas desmatadas para a consolidação das áreas de produção já existentes. Querem ainda descentralizar a legislação ambiental, permitindo que estados e municípios tenham regras próprias diferentes das regras da União para coisas como o tamanho das áreas de preservação nas margens dos rios. Os ruralistas defendem que sejam criadas reservas ambientais em biomas, e não mais áreas preservadas em cada propriedade.

“Se o Congresso tiver a coragem de fazer as mudanças, isso não vai ser difícil. Ano que vem, vai ter eleições e as pessoas vão querer saber de que lado os deputados e senadores estão. Precisamos estar do lado do conhecimento científico, sem paixões e achismos”, defende o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado Valdir Colatto (PMDB-SC).

Três propostas devem concentrar as atenções neste primeiro semestre no Congresso, na avaliação dos ruralistas. A principal será o relatório do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), que será elaborado na comissão especial de mudança do Código Florestal na Câmara. Também deve voltar ao debate o projeto conhecido como PL da Anistia, que propõe a consolidação das áreas agricultáveis, sem recomposição das matas degradadas.

A 'toque de caixa'
E o terceiro foco será o PLP 12/2003, aprovado em dezembro na Câmara, e que será apreciado pelo Senado. Ele é um exemplo do empenho da bancada ruralista em agilizar votações estratégicas para o setor. A proposta é antiga na Casa, data de 2003. O projeto, que fixa as normas de competência e cooperações entre entes da Federação, era uma das prioridades de ambientalistas no Congresso.

Em dezembro, no entanto, o PL foi aprovado na Câmara com emendas que contrariaram os interesses verdes. Uma delas restringiu ao órgão licenciador a competência de autuar por danos ambientais. Ecologistas afirmam que a emenda retira funções do Ibama, que fica impossibilitado de multar quando o órgão licenciador for estadual ou municipal.

“Colocaram isso para se livrarem de autuações do Ibama. Quando foi proposto pelo Sarney Filho [PV-MA], o projeto tinha como objetivo criar condições de cooperação entre entes federativos. Mas uma parte essencial dele se perdeu. Talvez o Senado possa recuperar a dimensão da cooperação e retirar pontos colocados de última hora”, avalia o coordenador do Programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA), Raul do Valle.

Os defensores do projeto argumentam que a possibilidade de mais de um órgão ambiental aplicar sanções pode provocar ações na Justiça por competências concorrentes. Segundo o senador Gilberto Goellner (DEM-MT), a intenção da bancada é aprovar o texto “a toque de caixa”, sem muito debate, para poder manter a redação da Câmara sem alterações.

“Eu sou favorável a aprovação do projeto como veio da Câmara. Já requeri a relatoria do mesmo na Comissão de Meio Ambiente do Senado. Precisamos ter convencimento das lideranças para que a gente aprove esse projeto a toque de caixa, com o texto que veio da Câmara. Precisamos flexibilizar a legislação de tal forma que os estados possam executar seus próprios planos de legalização dos imóveis”, considerou o senador Goellner.

Ajuda do governo
Por sua parte, os deputados ligados às causas ambientais também organizam-se para evitar o “tratoraço” planejado pelos ruralistas. Parlamentares que defendem interesses ambientais apostam em articulações junto ao governo para evitar mudanças drásticas. A tática, porém, pode dar errado: o governo também demonstra interesse em flexibilizar algumas regras ambientais para facilitar processos como o licenciamento de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

“A liderança do governo ignorou, mostrando que o meio ambiente não tem importância para o governo. Fontana, interessado na aprovação do pré-sal, permitiu que essa proposta passasse, mesmo sob protesto do próprio Ministério do Meio Ambiente. Enquanto isso, Lula fazia discurso em Copenhague”, acusa o líder do PV na Câmara, deputado Edson Duarte (BA), se referindo ao líder do governo na Câmara, Henrique Fontana (PT-RS).

Mesmo assim, os ambientalistas ainda apostam na sensibilidade do presidente Lula. Segundo Edson Duarte, uma das estratégias ambientalistas será buscar o apoio de Lula para que ele vete pontos contrários aos interesses ambientais aprovados no Congresso. O líder do PV aposta que este ano o governo será mais cauteloso em relação a temas ambientais, devido à presença da ex-ministra do Meio Ambiente e senadora Marina Silva (PV-AC) na corrida eleitoral pela Presidência da República. “Espero que o governo brasileiro não negligencie o tema e que tenha sensatez de perceber que será impossível cumprir as metas propostas em Copenhague se a legislação for flexibilizada”, considerou o líder do PV. “A presença de Marina Silva no debate eleitoral vai ajudar a sensibilizar o governo. Espero que Marina consiga sensibilizar, para que o governo ajude a frear essa corrida”, completou se referindo as tentativas ruralistas de mudar a legislação ambiental.

*Matéria publicada no jornal Congresso em Foco de 03/02/2010 (http://congressoemfoco.ig.com.br)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O feiticeiro de São Romão

O texto de Wilson Lins que está aí embaixo - Divindades, bichos e assombrações na ribeira - me inspirou a fazer algumas elucubrações.

1 - Se a cobra de asas da gruta de Bom Jesus da Lapa perdeu o poder de voar e, portanto, de aterrorizar, depois que tantos ofícios de Nossa Senhora foram rezados, como especula o autor, onde será que ela se meteu?

2 – Se os peixes do Velho Chico estão se acabando e as enchentes são controladas pelas barragens, quem é que vai precisar de adular o caboclo d´água para que ele ajude os pescadores e evite que a água inunde as roças?

3 – Quem é que tem medo do minhocão, se o rio está tão assoreado e raso que as embarcações quase já não conseguem navegar e nem correm o risco de serem afundadas por ele?

Pois é, meus amigos, muita coisa mudou neste mundão de Deus. Tive uma conversa hoje com um velho feiticeiro de São Romão, o que me deixou cabisbaixo e pensativo. Ele é mandingueiro das antigas, daqueles que inspiravam respeito e temor. Para vocês terem uma idéia, o velho ainda guarda uma cascavel viva dentro de um surrão que é utilizada em seus trabalhos de feitiçaria.

Com a voz grave e pausada, ele me disse em tom paternal:

- Meu filho, os bichos e as assombrações de hoje são outras e estão acabando com as antigas. Caboclo d´água, minhocão, cobra de asas, mula-sem-cabeça, pé-de-garrafa e outras aparições deste sertão velho estão perdendo a força. A divindade maior da atualidade no rio São Francisco é o grão de soja, que é pequeno, mas tem grandes poderes. É a soja que está mandando o homem destruir nossas matas, com tudo que elas têm. Por causa dela, estão sugando nossas águas e entupindo os rios e riachos, que também estão sendo envenenados. Qual é o caboclo d´água ou a mula-sem-cabeça que pode fazer uma coisas dessas?

Deixei a conversa com o velho feiticeiro sentindo uma enorme saudade do caboclo d´água.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Divindades, bichos e assombrações da ribeira

Wilson Lins

O vale do São Francisco é fértil em lendas e propício a crendices. O seu folclore é rico e colorido. Os seus "bichos", visagens e assombrações não têm, contudo, os requintes de perversidade dos lobisomens e papa-figos de outras regiões do país. Só a "cobra de asas" da gruta da Lapa é ameaçadora; os outros mitos ribeirinhos apenas assustam. Na geografia dos pavores infantis, os bichos da mitologia são-franciscana são os menos horripilantes, os menos malignos. Os bichos da noite, no vale, preferem brincar a fazer mal. A própria cobra de asas da Lapa já não oferece tanto perigo hoje como acontecia antigamente: depois de tantos anos de ofícios de Nossa Senhora rezados para que suas penas caiam, é de se esperar que a serpente já esteja completamente pelada.

São muitas as entidades míticas da beirada. A mais popular delas, sem dúvida, é o caboclo-d'água, baixo, troncudo, bela musculatura, pele bronzeada e olho no meio da testa. O caboclo-d'água é bem-humorado, mas às vezes faz das suas, provocando prejuízos e até mortes. Bem tratado, presenteado de vez em quando com uns pedaços de fumo para mascar, o caboclo se torna benfazejo, ajuda os seus obsequiadores nas pescarias, evita que o rio entre em seus roçados etc. Maltratado ou tratado com indiferença, no entanto, torna-se perigoso. Sua morada predileta é nos rochedos do meio do rio. Também habita os bancos de areia das ilhas submersas. É anfíbio, mas não gosta de se afastar muito do rio. Só sai da água para exercer alguma vingança ou fazer algum favor. Nunca um caboclo-d'água foi visto muito longe do rio. Ele se afasta, no máximo, cem metros do seu habitat.

Contam coisas assombrosas a seu respeito. Para muita gente, ele é um só e se é visto em vários lugares ao mesmo tempo, é por ter poderes para isso. No entanto, há no vale muitas pessoas que afirmam existirem vários caboclos-d'água. Para essas pessoas, a mãe-d'água também não é uma só e sim muitas. Dos mitos aquáticos do vale, o caboclo e a mãe-d'água são os mais solicitados. Mas ainda há o minhocão (ou surubim-rei), que é o rei do rio, mandando e desmandando em tudo, na vontade dos peixes e na vontade das águas. Na opinião de muitos, o minhocão é um surubim de mais de trezentos anos de idade, que de tão velho perdeu as barbatanas, ficou roliço e, enfurecido por isso, vive fazendo mal, virando embarcações, comendo os outros peixes, derrubando barrancos para estragar as roças dos beiradeiros. Do seu corpo roliço nascem os porcos d'água, pequenos e feios monstros, cabeça e patas dianteiras de porco e o resto do corpo de peixe. Nadam muito e são usados pelo minhocão para escavar os barrancos e matar as plantações marginais. Sempre que um minhocão morre de velho e outro surubim centenário o substitui no governo do rio, há a "mudança do reino". A corte é transferida para outro perau ou sumidouro ao longo do rio.

O caboclo-d'água, a mãe-d'água e o minhocão enchem de leves pavores noturnos a gente da beira do rio, mas não afligem em nada os moradores da caatinga e dos brejos, que, por sua vez, têm outros mitos a respeitar. Na caatinga e nos brejos do interior dos municípios, reinam a caipora, a mula-sem-cabeça, o Zé-capiongo, o fogo-azul, o pé-de-garrafa, a mão-pelada e o Romãozinho, um espírito travesso que tanto atua nas caatingas e brejos como dentro do rio, em pleno domínio do minhocão e do caboclo-d'água. As aventuras de Romãozinho dariam um livro. O Romãozinho vence o caboclo-d'água, tanto em peraltice como na popularidade. Não há, na beirada, quem desconheça as diabruras do diabinho que passa os dias apagando o fogo das cozinhas e à noite atira pedras nos telhados das casas.

Povoando as noites de sezão do beiradeiro, o caboclo-d'água, o minhocão e o Romãozinho enchem de brandos pavores a alma do vale. Nasceram com a sociedade pastoril ali surgida nos primórdios do povoamento do vale. Os marinheiros de Miguel Henrique e Pedro Rebelo levaram para o São Francisco, em 1550, as crendices européias que enchiam os mares de sereias, mas lá já encontraram, amedrontando o gentio supersticioso, os deuses da terra. Os espíritos da selva, misturados com os trazidos de além-mar pelos colonizadores, deram origem a uma mitologia colorida e que, à proporção que os anos passam, vai sendo enriquecida com outras contribuições de crendices e superstições oriundas de outras regiões do interior brasileiro. Caminho natural das populações do centro, o São Francisco foi recebendo e incorporando ao seu patrimônio mítico as lendas e os bichos noturnos de várias áreas do sertão. Daí o fato de encontrarmos, integrando o folclore e a mitologia da ribeira são-franciscana, versos, canções, lendas e "bichos" dos canaviais do Recôncavo baiano, das fazendas de gado de Minas Gerais, dos garimpos de Goiás, das caatingas de Pernambuco, dos cafezais de São Paulo, dos currais do Piauí e do aguaçal amazônico. Por força de sua condição de principal via de comunicação entre o norte, o centro e o sul, o São Francisco reúne em seu folclore um pouco de toda a mitologia brasileira, apresentando-se como um catálogo vivo das lendas e crendices do país. O minhocão do São Francisco e o seu caboclo-d'água são personagens símbolos de todas as sociedades lacustres, o mesmo acontecendo à caipora de suas caatingas, que é a mesma caapora de outros sertões, embora menos malvada. O próprio Romãozinho, que é a mais beiradeira das assombrações da beirada, tem seus pontos de contato com "espíritos malignos" de outras regiões do país. Aliás, bem observado, não existem, na realidade, grandes diferenças entre os vários mitos das diversas zonas do interior brasileiro: os nomes são diferentes, mas os "bichos" são os mesmos. O cabeça-de-cuia das águas do Parnaíba é o mesmo caboclo-d'água dos barrancos do São Francisco. A boiúna amazônica é irmã gêmea do minhocão são-franciscano. A unidade mítica do Brasil é um fato. E o rio São Francisco, que no período colonial constituiu um fator decisivo da unidade territorial da pátria em formação, exerceu, igualmente, uma grande influência na unidade de suas lendas, mitos e crenças populares.

Praga

Que tenha cem anos de atraso aquele que derrubar um pé de pequi.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Pilão Arcado, a cidade submersa

Paulo Sardeiro*

Recordo-me bem dos meus sete e oito anos, quando vivi e brinquei em Pilão Arcado. Cidadezinha simples, com seu chão pedregoso, de pedras de fogo, com as quais eu me divertia tirando faíscas, batendo uma na outra. Lembro-me do seu campo de futebol, localizado junto ao cais que marginava o rio São Francisco, onde joguei muitas peladas com bolas de borracha e, quando não as tinha, jogava com bolas de pano fabricadas por mim mesmo com meias do meu pai. Ninguém em casa nunca soube disso. Do lado oposto ao cais, a uma pequena distância do campo, ficava a cadeia pública, em que a grade de uma das celas permitia uma visão do campo e do rio. Eu, com meus sete a oito anos, costumava ficar conversando com o preso que, a esta época, ocupava aquela cela. Sentado no calçadão de cimento, junto à grade, ouvi muitas histórias sobre sua vida; histórias às vezes engraçadas, às vezes tristes, embora eu não me lembre, com pormenores, de nenhuma delas. Um pouco acima do campo de futebol, ainda na margem do rio, estava o mercado tradicional destas pequenas cidades. Foi aí que eu vi, chegando nas costas de um pescador, o maior surubim que eu já observei em toda a minha vida. O homem, que não era tão baixo, trazia, apoiado ao ombro, o peixe cuja cauda vinha se arrastando pelo chão. Eu fiquei olhando, entre admirado e embasbacado, o tamanho daquele espécime. Nunca mais vi outro igual.

A igreja de Pilão Arcado. Ah! A igreja. Nela havia duas particularidades que chamaram a atenção do meu pai, titular da coletoria da cidade. A porta principal era cravejada e perfurada por balas, resquícios de lutas políticas de antigamente. A segunda característica interessante era que essa igreja, relativamente alta e de porte mais ou menos avantajado, não tinha uma cumeeira, como era de se esperar em uma construção desse tipo. Meu pai, que era uma pessoa perspicaz, não entendia muito bem como esse prédio pôde ser construído daquela forma.

À noite, sentados em frente de casa, costumávamos ficar ali conversando, eu, meu pai, minha mãe, minha avó e alguns de meus irmãos (éramos sete na época). Eu, particularmente, gostava de olhar e admirar o céu noturno, geralmente cheio de estrelas. Por volta das 21 horas, ouvíamos, claramente, a oração final cantada pelos fiéis na igreja que ficava ali perto. Essa oração era o Senhor Deus e, naquele momento, enquanto durasse a reza, em sinal de respeito, todos ficávamos de pé e calados. Até meu pai, que não era muito afeito a padrões religiosos.

A Semana Santa era uma ocorrência toda especial em Pilão Arcado. Além das rezas tradicionais da Igreja Católica, havia, na sexta-feira santa, uma romaria em direção à chamada pedra branca, um rochedo mais ou menos branco, de uns cinco a dez metros de altura, o qual se podia escalar facilmente. No seu cimo havia uma cruz. Então, nesse dia santo, muitas velas eram ali acesas e muitas rezas relacionadas com a morte de Cristo, cantadas pelos fiéis. Eu, com minha inocência, própria da minha idade e da época, ficava intimamente revoltado e sumamente magoado com o que fizeram os homens com Jesus Cristo. Sentado, lá em cima da pedra branca, às vezes até chorava, comovido com o drama vivido por Cristo.

Ainda na sexta-feira santa, outra ocorrência espantosa e incompreensível para mim. Eram os chamados penitentes, homens com vestimenta branca cobrindo-os até o rosto, que se flagelavam na noite da paixão Cristo, cortando as próprias costas com navalhas ou algo semelhante. Não se podia aproximar muito deles, pois eram pessoas desconfiadas, talvez do próprio ato grotesco que estavam a cometer. Em alguns, dava para se perceber manchas de sangue na vestimenta branca.

Hoje eu começo a imaginar aquela cidadezinha submersa nas águas do grande lago. Sua igreja estará ainda de pé? A cadeia pública, o mercado, a casa onde eu morei e onde nasceu uma de minhas irmãs, ainda existem submersos? A pedra branca, aquele enorme rochedo onde eu chorei a morte de Cristo, naturalmente, ainda estará por lá, quieta, no fundo do lago, sem ter mais velas acesas ou peregrinos que a visitem na semana santa. Tudo isso são recordações submersas que relembro com certa nostalgia.

Eu e minha família deixamos Pilão Arcado em uma madrugada de março de 1957, a bordo do vapor São Salvador, que nos transportou até a cidade vizinha de Casa Nova, também às margens do São Francisco.

* O autor, que é médico e professor, nasceu e viveu durante muito tempo no território da bacia do São Francisco. Atualmente mora em Itabuna-Ba.

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