quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Desmatamento de mulheres

A velha beata parou em minha frente, no meio da rua, em Bom Jesus da Lapa, para comentar a notícia que tinha recebido de um padre. Sorriu, levantou as mãos para o céu e falou em voz alta, de forma que as pessoas mais próximas puderam ouvir:

- O Bom Jesus é quem nos protege, ele e a virgem Maria! Agora elas vão ver. Estou de alma lavada.

Fiquei curioso. Havia como não ficar?

- Do que está falando, minha velha?

Essas beatas são muito pacientes, e não seria eu que mudaria seu jeito de ser e a obrigaria a modificar o roteiro de uma conversa apenas porque eu estava apressado. Aquela mulher fora treinada em anos e anos de rosário, rezando seguidamente centenas de ave-marias com intercalações periódicas de pai-nossos, como se estivesse repetindo um mantra oriental.

- Meu filho – continuou calmamente a velha mulher – o padre José não é homem de mentira e foi ele quem me contou esta história.

Tive que me acalmar e controlar a curiosidade para não ser grosseiro com uma pessoa tão amável. Peço que o leitor também tenha paciência. Esperei em silêncio e ela continuou:

- Pois hoje mesmo o padre veio me dizer que aquelas vadias da beira do rio...

- As raparigas! – interrompeu um gaiato que ouvia da calçada do bar.

- Aquelas raparigas sem-vergonha – retomou a beata – elas vão ter que ficar bem longe da gruta, graças ao Bom Jesus e Nossa Senhora. Padre José me disse que o bispo conversou com o prefeito e ele vai botar a polícia no pé dessas perdidas. Vão embora no chicote.

- As bichinhas são tão boas! – gritou outro gaiato.

- É porque você é um perdido igual a elas, aquelas cobras de asa – respondeu a velha demontrando revolta na voz.

No meu íntimo, eu considerava aquilo uma violência com as pobres prostitutas. O local escolhido por elas para exercer a profissão - as proximidades da gruta do Bom Jesus - não era certamente o mais adequado do ponto de vista da igreja, mas isso não dava direito ao bispo de escorraçá-las como animais. Além disso, elas também tinham lá suas razões, pois precisavam trabalhar para sustentar os filhos e aquele era o ponto de maior movimento, para onde acorriam romeiros e turistas. Não é assim que funcionam os negócios? Enquanto estava imerso nesses pensamentos, fui surpreendido por uma pergunta inesperada da beata:

- Você concorda comigo, meu filho?

Foi o suficiente para eu ficar zonzo e suar frio. Ainda mais que uma numerosa platéia assistia ao espetáculo das calçadas próximas em frente aos bares. A mulher fixou aqueles olhos profundos e expressivos nos meus e perguntou incisivamente:

- Concorda ou não concorda? Ficou mudo? Seja homem!

O suor descia pela testa e eu não tinha como disfarçar. A beata certamente havia percebido minha fraqueza, pois me olhava da cabeça aos pés com ar de desprezo, fazendo-me sentir um zé-ninguém ali na capital da romaria, a meca católica do rio São Francisco. Meus pensamentos e idéias estavam bloqueados e eu não sabia o que fazer. Foi aí que alguém gritou, inesperadamente e em tom de deboche, de uma das calçadas:

- O bispo vai fazer desmatamento de mulher!

A onda de gritos, assovios e gargalhadas que inundou a rua acabou por atrair muita gente, até os turistas e romeiros que tinham ido para a festa do Bom Jesus. Como eu não queria ser “desmatado” pela rigidez moral da beata, não perdi aquela oportunidade e sumi na multidão. Achei melhor fazer uma visita à gruta do Bom Jesus.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Navegantes

Contador de visitas