quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Vida nova à casa velha

Devolver a vitalidade física ao rio São Francisco é tudo de bom, mas temos que pensar também em um novo tipo de revitalização.

Lendo o artigo “História e memória de Januária”*, de Ana Alaíde Barbosa Amaral, que trata de patrimônio histórico e identidade, fiquei a pensar sobre a necessidade de tratarmos o problema da revitalização do rio São Francisco de um campo de visão maior do que o trivial. Quando se fala em revitalização, a idéia geral parece ser simplesmente a de recuperar matas ciliares, desassorear o rio, controlar a erosão e realizar obras de saneamento básico. Os mais ousados chegam a indicar a necessidade de regular a até rever o modelo de atividades econômicas que têm impactos físicos e ecológicos sobre o Velho Chico, especialmente a agricultura de exportação que vem devastando o cerrado.

Tudo isso é imprescindível e urgente, mas parece que a dimensão cultural, tão importante quanto as outras, não está sendo lembrada. É até possível que a idéia de revitalização seja confundida com modernização, progresso, renovação e por aí afora, e que as populações ribeirinhas, seguindo a trilha das elites, reforcem o entendimento de que é preciso destruir tudo aquilo que se considera antigo para dar lugar a alguma novidade. Uma frase do artigo de Ana Alaíde sobre Januária ficou bem marcada em minha memória: “A sociedade local sempre entendeu que o progresso da cidade viria se fossem demolidas as ‘casas velhas’”. Ela cita a demolição de várias igrejas de valor histórico para a cidade e do Colégio São João, “tradicional estabelecimento de ensino, referência na região e no Estado (durante décadas nele vinham estudar alunos do interior da Bahia e até de Goiás)”.

Essa mentalidade não é exclusiva de Januária e nem é nova. Desde a segunda metade do século XIX, a sociedade do médio São Francisco vem sendo seduzida pela ideologia do progresso, que prega o descarte do antigo e sua substituição pelo novo. Lembro-me que na cidade da Barra um velho casarão secular, de importância histórica e arquitetônica inegável, teve que ir ao chão para que fosse construída uma “moderna” agência do Banco do Brasil. Exemplos como esses devem jorrar aos borbotões ao longo do Velho Chico. Alguma influência do positivismo? É possível, mas o mais provável é que, na falta de qualquer incentivo oficial para a preservação, prevaleça o interesse econômico que leva à destruição.

Diante dessa realidade, é necessário pensar numa revitalização cultural do rio São Francisco, não apenas no sentido de preservar os bens materiais e imateriais, o que não é pouca coisa, mas de dar nova vida a eles. Esse papel não é apenas do Estado e sim do povo do Velho Chico, que soube desenvolver uma das culturas mais fascinantes do Brasil, desde épocas anteriores ao seu descobrimento.

A arquitetura deu o mote para este artigo, mas há outras faces da rica cultura sanfranciscana que devem ser revitalizadas. Penso, por exemplo, na culinária com suas incontáveis expressões. Falando em culinária, não há como esquecer que os peixes estão diminuindo e que é preciso fazer com que eles voltem às nossas águas e passem novamente a alimentar as populações ribeirinhas. Os especialistas dizem que a causa principal do sumiço dos peixes são as barragens. Ao regularem o fluxo das águas, elas impedem que haja grandes enchentes e, portanto, a formação das lagoas onde a fauna ictiológica sempre se reproduziu e se multiplicou. Deve haver alguma solução para este problema.

As festas populares, a mitologia, a literatura oral e escrita, os costumes, a linguagem e tantas outras manifestações da cultura precisam também ser revitalizadas, no sentido de que devem ser estimuladas. A revitalização cultural, a meu ver, não é uma mera restauração do passado e sim um processo de construção em que passado e presente dialoguem. Nas relações entre a cultura local e as outras, acho que o melhor caminho é seguir o exemplo dos modernistas e adotar a antropofagia como método de assimilação. Trata-se de uma defesa para que não sejamos completamente engolidos pelo vendaval que vem de fora e, ao mesmo tempo, de uma estratégia de estímulo ao impulso criativo.

* O artigo pode ser encontrado em http://www.arquitextos.com.br/minhacidade/mc227/mc227.asp.

2 comentários:

  1. “VIDA NOVA À CASA VELHA” - O título já é bem sugestivo. Para renovar nem sempre é recomendável destruir. O mais interessante mesmo é compor uma dobradinha mesclando o antigo com aspectos inovadores, sem deixar perder no ar a originalidade, a autenticidade, a essência das coisas.
    Para além das águas do Rio São Francisco... Concordo plenamente com o convite da articulista Ana Alaíde, suscitando que zelar do patrimônio sanfranciscano, não é apenas o querer combater as erosões, a redução do volume de água do Rio, enfim, não se resume a revitalização ambiental. Nessa conjuntura, cabe também uma percepção mais global, onde as manifestações e os monumentos culturais aparecem. A idéia é enxergar e valorizar a pluralidade e a riqueza que envolve o Rio São Francisco: a Culinária, a música, a dança... O Rio São Francisco é o fio condutor, a inspiração que move esse caldeirão cultural – é a grande prioridade - porém os fatores que estão ao redor não podem ser negligenciados.
    A sociedade tem sua identidade fincada na linha do tempo, portanto acho contundente e concordo com o texto quando coloca: “A revitalização cultural, a meu ver, não é uma mera restauração do passado e sim um processo de construção em que passado e presente dialoguem”. Tudo está interligado e tem sua importância. A memória de um povo está na constituição de momentos, episódios que são revelados nos livros, nos projetos arquitetônicos, nos museus (registros em geral) e etc. Quando deteriorados o povo é colocado num cenário desolador - “sem lenço e sem documento”... O povo torna-se indigente. É isso que queremos? Creio que não, por isso está mais do que na hora de deixar a passividade de lado e dar um basta nas ações arbitrárias, que gradativamente estão fragilizando a cultura sanfranciscana.
    Pensando bem, vejo o Blog Vapor Encantado por meio do processo de interatividade, como um espaço fantástico, na concessão de Vida Nova à Casa Velha. A partir do momento que são divulgadas as histórias encantadas e denunciados os fatos desencantados, pessoas sentem-se mobilizadas a descortinarem outros tantos acontecimentos, para então tomar alguma atitude que venha resgatar os referenciais históricos. A cadeia social mediada pelo blog nutre a idéia de fomentar o moderno dentro de um contexto em que as raízes são preservadas. Isso é muito bom.Parabéns pela a iniciativa, tio! Acredito que esta página seja um dos caminhos viáveis para protestar tais desmandos e reunir aliados comprometidos com a revitalização.

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  2. Romênia,
    Obrigado pelo comentário. É pela cultura sanfranciscana, desenvolvida ao longo de séculos, que nos identificamos como sanfranciscanos. Cultura e identidade se confundem.

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