sábado, 30 de janeiro de 2010

Pilão Arcado, a cidade submersa

Paulo Sardeiro*

Recordo-me bem dos meus sete e oito anos, quando vivi e brinquei em Pilão Arcado. Cidadezinha simples, com seu chão pedregoso, de pedras de fogo, com as quais eu me divertia tirando faíscas, batendo uma na outra. Lembro-me do seu campo de futebol, localizado junto ao cais que marginava o rio São Francisco, onde joguei muitas peladas com bolas de borracha e, quando não as tinha, jogava com bolas de pano fabricadas por mim mesmo com meias do meu pai. Ninguém em casa nunca soube disso. Do lado oposto ao cais, a uma pequena distância do campo, ficava a cadeia pública, em que a grade de uma das celas permitia uma visão do campo e do rio. Eu, com meus sete a oito anos, costumava ficar conversando com o preso que, a esta época, ocupava aquela cela. Sentado no calçadão de cimento, junto à grade, ouvi muitas histórias sobre sua vida; histórias às vezes engraçadas, às vezes tristes, embora eu não me lembre, com pormenores, de nenhuma delas. Um pouco acima do campo de futebol, ainda na margem do rio, estava o mercado tradicional destas pequenas cidades. Foi aí que eu vi, chegando nas costas de um pescador, o maior surubim que eu já observei em toda a minha vida. O homem, que não era tão baixo, trazia, apoiado ao ombro, o peixe cuja cauda vinha se arrastando pelo chão. Eu fiquei olhando, entre admirado e embasbacado, o tamanho daquele espécime. Nunca mais vi outro igual.

A igreja de Pilão Arcado. Ah! A igreja. Nela havia duas particularidades que chamaram a atenção do meu pai, titular da coletoria da cidade. A porta principal era cravejada e perfurada por balas, resquícios de lutas políticas de antigamente. A segunda característica interessante era que essa igreja, relativamente alta e de porte mais ou menos avantajado, não tinha uma cumeeira, como era de se esperar em uma construção desse tipo. Meu pai, que era uma pessoa perspicaz, não entendia muito bem como esse prédio pôde ser construído daquela forma.

À noite, sentados em frente de casa, costumávamos ficar ali conversando, eu, meu pai, minha mãe, minha avó e alguns de meus irmãos (éramos sete na época). Eu, particularmente, gostava de olhar e admirar o céu noturno, geralmente cheio de estrelas. Por volta das 21 horas, ouvíamos, claramente, a oração final cantada pelos fiéis na igreja que ficava ali perto. Essa oração era o Senhor Deus e, naquele momento, enquanto durasse a reza, em sinal de respeito, todos ficávamos de pé e calados. Até meu pai, que não era muito afeito a padrões religiosos.

A Semana Santa era uma ocorrência toda especial em Pilão Arcado. Além das rezas tradicionais da Igreja Católica, havia, na sexta-feira santa, uma romaria em direção à chamada pedra branca, um rochedo mais ou menos branco, de uns cinco a dez metros de altura, o qual se podia escalar facilmente. No seu cimo havia uma cruz. Então, nesse dia santo, muitas velas eram ali acesas e muitas rezas relacionadas com a morte de Cristo, cantadas pelos fiéis. Eu, com minha inocência, própria da minha idade e da época, ficava intimamente revoltado e sumamente magoado com o que fizeram os homens com Jesus Cristo. Sentado, lá em cima da pedra branca, às vezes até chorava, comovido com o drama vivido por Cristo.

Ainda na sexta-feira santa, outra ocorrência espantosa e incompreensível para mim. Eram os chamados penitentes, homens com vestimenta branca cobrindo-os até o rosto, que se flagelavam na noite da paixão Cristo, cortando as próprias costas com navalhas ou algo semelhante. Não se podia aproximar muito deles, pois eram pessoas desconfiadas, talvez do próprio ato grotesco que estavam a cometer. Em alguns, dava para se perceber manchas de sangue na vestimenta branca.

Hoje eu começo a imaginar aquela cidadezinha submersa nas águas do grande lago. Sua igreja estará ainda de pé? A cadeia pública, o mercado, a casa onde eu morei e onde nasceu uma de minhas irmãs, ainda existem submersos? A pedra branca, aquele enorme rochedo onde eu chorei a morte de Cristo, naturalmente, ainda estará por lá, quieta, no fundo do lago, sem ter mais velas acesas ou peregrinos que a visitem na semana santa. Tudo isso são recordações submersas que relembro com certa nostalgia.

Eu e minha família deixamos Pilão Arcado em uma madrugada de março de 1957, a bordo do vapor São Salvador, que nos transportou até a cidade vizinha de Casa Nova, também às margens do São Francisco.

* O autor, que é médico e professor, nasceu e viveu durante muito tempo no território da bacia do São Francisco. Atualmente mora em Itabuna-Ba.

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