sábado, 30 de janeiro de 2010

Pilão Arcado, a cidade submersa

Paulo Sardeiro*

Recordo-me bem dos meus sete e oito anos, quando vivi e brinquei em Pilão Arcado. Cidadezinha simples, com seu chão pedregoso, de pedras de fogo, com as quais eu me divertia tirando faíscas, batendo uma na outra. Lembro-me do seu campo de futebol, localizado junto ao cais que marginava o rio São Francisco, onde joguei muitas peladas com bolas de borracha e, quando não as tinha, jogava com bolas de pano fabricadas por mim mesmo com meias do meu pai. Ninguém em casa nunca soube disso. Do lado oposto ao cais, a uma pequena distância do campo, ficava a cadeia pública, em que a grade de uma das celas permitia uma visão do campo e do rio. Eu, com meus sete a oito anos, costumava ficar conversando com o preso que, a esta época, ocupava aquela cela. Sentado no calçadão de cimento, junto à grade, ouvi muitas histórias sobre sua vida; histórias às vezes engraçadas, às vezes tristes, embora eu não me lembre, com pormenores, de nenhuma delas. Um pouco acima do campo de futebol, ainda na margem do rio, estava o mercado tradicional destas pequenas cidades. Foi aí que eu vi, chegando nas costas de um pescador, o maior surubim que eu já observei em toda a minha vida. O homem, que não era tão baixo, trazia, apoiado ao ombro, o peixe cuja cauda vinha se arrastando pelo chão. Eu fiquei olhando, entre admirado e embasbacado, o tamanho daquele espécime. Nunca mais vi outro igual.

A igreja de Pilão Arcado. Ah! A igreja. Nela havia duas particularidades que chamaram a atenção do meu pai, titular da coletoria da cidade. A porta principal era cravejada e perfurada por balas, resquícios de lutas políticas de antigamente. A segunda característica interessante era que essa igreja, relativamente alta e de porte mais ou menos avantajado, não tinha uma cumeeira, como era de se esperar em uma construção desse tipo. Meu pai, que era uma pessoa perspicaz, não entendia muito bem como esse prédio pôde ser construído daquela forma.

À noite, sentados em frente de casa, costumávamos ficar ali conversando, eu, meu pai, minha mãe, minha avó e alguns de meus irmãos (éramos sete na época). Eu, particularmente, gostava de olhar e admirar o céu noturno, geralmente cheio de estrelas. Por volta das 21 horas, ouvíamos, claramente, a oração final cantada pelos fiéis na igreja que ficava ali perto. Essa oração era o Senhor Deus e, naquele momento, enquanto durasse a reza, em sinal de respeito, todos ficávamos de pé e calados. Até meu pai, que não era muito afeito a padrões religiosos.

A Semana Santa era uma ocorrência toda especial em Pilão Arcado. Além das rezas tradicionais da Igreja Católica, havia, na sexta-feira santa, uma romaria em direção à chamada pedra branca, um rochedo mais ou menos branco, de uns cinco a dez metros de altura, o qual se podia escalar facilmente. No seu cimo havia uma cruz. Então, nesse dia santo, muitas velas eram ali acesas e muitas rezas relacionadas com a morte de Cristo, cantadas pelos fiéis. Eu, com minha inocência, própria da minha idade e da época, ficava intimamente revoltado e sumamente magoado com o que fizeram os homens com Jesus Cristo. Sentado, lá em cima da pedra branca, às vezes até chorava, comovido com o drama vivido por Cristo.

Ainda na sexta-feira santa, outra ocorrência espantosa e incompreensível para mim. Eram os chamados penitentes, homens com vestimenta branca cobrindo-os até o rosto, que se flagelavam na noite da paixão Cristo, cortando as próprias costas com navalhas ou algo semelhante. Não se podia aproximar muito deles, pois eram pessoas desconfiadas, talvez do próprio ato grotesco que estavam a cometer. Em alguns, dava para se perceber manchas de sangue na vestimenta branca.

Hoje eu começo a imaginar aquela cidadezinha submersa nas águas do grande lago. Sua igreja estará ainda de pé? A cadeia pública, o mercado, a casa onde eu morei e onde nasceu uma de minhas irmãs, ainda existem submersos? A pedra branca, aquele enorme rochedo onde eu chorei a morte de Cristo, naturalmente, ainda estará por lá, quieta, no fundo do lago, sem ter mais velas acesas ou peregrinos que a visitem na semana santa. Tudo isso são recordações submersas que relembro com certa nostalgia.

Eu e minha família deixamos Pilão Arcado em uma madrugada de março de 1957, a bordo do vapor São Salvador, que nos transportou até a cidade vizinha de Casa Nova, também às margens do São Francisco.

* O autor, que é médico e professor, nasceu e viveu durante muito tempo no território da bacia do São Francisco. Atualmente mora em Itabuna-Ba.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Crônica do assassinato de uma cidade

“Adeus, Remanso, Casa Nova, Sento Sé,
adeus, Pilão Arcado, vem o rio te engolir...”

Esses versos da música Sobradinho, de Sá e Guarabyra, que fez sucesso na década de 1970, devem ressoar ainda hoje como um canto fúnebre nos ouvidos dos antigos moradores das cidades engolidas pelo lago de Sobradinho. Eles viveram o horror da destruição dos lugares onde nasceram e cresceram. Eram cidades históricas de tradições seculares, que participavam do imaginário e da sentimentalidade do rio São Francisco, cada uma delas tendo sua própria identidade e significado na cabeça e na alma de toda a população ribeirinha. Foram quatro cidades “assassinadas” pela ditadura militar.

O lago formado pela construção da barragem de Sobradinho afetou mais de 13 mil famílias humildes, mas os ditadores militares que governavam o país na época não quiseram saber de conversa, afastando-as compulsoriamente de suas casas e terras, fazendo promessas que nunca se cumpriram. Os municípios de Sento Sé, Pilão Arcado, Casa Nova e Remanso foram declarados área de segurança nacional, o que, dentre outros efeitos, afastou a possibilidade de resistência e suprimiu o direito de voto para prefeito, situação que perdurou até 1985. Ao mesmo tempo, foi promovida uma intensa campanha para propagandear o que os governantes consideravam como pontos positivos do projeto. O governo da Bahia, representado por Antônio Carlos Magalhães, não deu qualquer sinal de apoio à população, colocando-se ao lado da ditadura.

No momento de compensar a população pelas perdas, cometeu-se muita injustiça, como se pode depreender do depoimento da pesquisadora Lygia Sigaud, citada no livro “Os descaminhos do São Francisco”, de Marco Antônio T. Coelho: “Os valores pagos pela Chesf (Companhia Hidro Elétrica do São Francisco) eram estipulados não em função de critérios pré-estabelecidos, mas resultaram da capacidade de resistência daqueles que estavam sendo indenizados e de suas relações harmoniosas com os funcionários da companhia, o que teria provocado variações de até 1.000% no pagamento de bens equivalentes”.

Os últimos dias de Sento Sé

O garimpeiro Jackson Coelho, testemunha do horror dantesco que assolou a região, tendo presenciado o sofrimento da população que lá vivia, dá este depoimento dramático sobre os últimos dias da centenária cidade de Sento Sé:

“No ano de 1971 recebemos com grande surpresa a notícia que a Chesf daria início à construção da barragem. Pânico Geral!

A partir deste primeiro comunicado deu-se seqüência a várias reuniões para estabelecer-se o local para onde iria a nova Sento Sé. Seria Piçarrão? Piri? Ou Tombador?
Quantas lágrimas, quantas tristezas, pior, perdas de memórias, mortes apaixonadas e repentinas. No município tudo isso aconteceu. Estavam acostumados ao torrão natal, ao carnaubal, ao rio São Francisco, às coisinhas humildes, mas que viram nascer e crescer.

A Chesf não aceitava debate. Começam as míseras indenizações, as permutas de casas e de roças. Algumas famílias a Chesf resolveu levar para as agrovilas em Bom Jesus da Lapa. E quantas ofertas boas. Era desnatural o tamanho do feijão, do milho, do tomate, até filmes. As moradias, Santo Deus, não eram casas... eram sobrados. E muita gente se foi, alguns puderam voltar e outros nem este direito tiveram.

Em 1975 começaram as mudanças, lentamente dava-se o adeus, as casas derrubadas, as roças queimadas, o plantio abandonado, as fruteiras desvalorizadas, os paus de arara transportando gente. As barracas de lona para abrigar as crianças.

Em 10 de outubro de 1976 chegou a vez de mudar a sede da municipalidade e, em seguida. as mudanças das famílias por completo, o mesmo sofrimento. A casa número 01.. a casa número 02… Que ora era pequena demais. Novembro de 1976, última mudança. Atrás deixavam-se parentes falecidos, casas caídas, a história. Aqui finda Sento Sé de ontem, abrindo espaço para uma nova vida numa nova cidade. A velha Sento Sé foi inundada pelas águas do grande lago de Sobradinho.”

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

As enchentes do rio São Francisco em Xique-Xique*

As cheias do Rio São Francisco, ou as enchentes como chamávamos, criavam transtornos para as famílias de Xique-Xique, mas, para meninada era uma das melhores distrações que podia acontecer e por isso eram ansiosamente esperadas a cada ano. A partir de dezembro, com as primeiras chuvas caídas nas nascentes do rio, em Minas Gerais, as águas do Velho Chico começavam a subir. As notícias da enchente eram trazidas pelos tripulantes dos vapores e das barcas que vinham de Pirapora (MG) para Juazeiro (BA), e logo a gente tomava conhecimento do aumento do volume da água, que chegava devagarzinho e, quase sem ser percebido, ia subindo o cais. A cada dia a população media os centímetros que o nível do rio subia e todos ficavam na expectativa do tamanho da enchente, vez que as cheias variavam de ano para ano e eram lembradas pela área que inundavam na cidade. Para a meninada, no entanto, a perspectiva de uma grande cheia era motivo de muita alegria, pois o fato de tomar banho de rio no local onde era a praça ou determinada rua representava uma grande novidade e desejava ser experimentada por todos os garotos. Era uma grande festa para os jovens da cidade. Bastava que as águas atingissem pelo menos 1 metro de profundidade na parede do cais, que tinha uma altura de 4 metros a partir do leito do rio, já era possível o exercício de saltar e mergulhar nas águas. Tinha-se todo o cuidado para não tocar a cabeça no fundo do rio que era representado por um lagedo o que poderia causar grave acidente. Os mais novos aprendiam com os mais velhos que ao saltar, os braços deveriam estar estirados para frente e logo tocassem a água o corpo deveria fazer uma inflexão para cima para que a entrada na água não se desse na vertical.

A depender da cheia poderia haver a expulsão de algumas famílias que tinham residências nas ruas próximas ao rio. Lembro-me muito bem da enchente de 1949. Tinha eu 6 anos e foi a maior que conheci. No entanto, na época, os mais velhos já diziam que enchente de 1949, realmente, foi a maior do século XX, garantindo, inclusive que fora maior que a de 1911, tida como uma cheia descomunal. A cidade, naquele ano possuía pequena área urbana e uma população que não ultrapassava os 5.000 habitantes. Ainda não fora construído o Mercado Municipal e, naturalmente, as ruas adjacentes atuais também não existiam. O movimento comercial, inclusive a feira-livre, era realizado a partir da Praça Getúlio Vargas, Rua Belo Horizonte, Rua Beira Rio e ruas vizinhas à Praça D. Máximo, ainda sem o jardim. Quando as águas ultrapassaram o cais, inundaram a Rua Beira Rio e em poucos dias subiram a Rua Belo Horizonte e a Praça Getúlio Vargas com uma rapidez ainda não vista, o povo entendeu que se tratava de uma enchente das grandes e começou a se mudar para casas de aluguel situadas na Avenida J.J. Seabra, parte mais alta ou mesmo para áreas desabitadas e sem construções, que ficavam para os lados onde hoje se situa o Colégio Senhor do Bonfim, onde, na falta de casas para alugar construíam pequenos e provisórios barracos para se abrigarem enquanto o rio estivesse dentro da cidade. Apesar dos transtornos para os moradores de Xique Xique, os males, por acaso, causados pelas enchentes eram plenamente recompensados pelo humus deixado nas suas margens quando o rio vazava, lá para os meses de junho e julho. Esse húmus era um excelente adubo para plantação e em cima dele os agricultores ribeirinhos, moradores nas inúmeras ilhas que cercam Xiquexique, plantavam o feijão e o milho com que se alimentavam e ainda sobrava algo para vender nas feiras livres. Eram as safras das vazantes ou dos lameiros, como eles chamavam o húmus

No que pesem os transtornos causados pela enchentes quase anuais, a ausência delas era motivo de muita tristeza para a população de Xique-Xique pois isso significava falta de chuvas nas cabeceiras do rio e, consequentemente, falta de grãos nos lameiros. A falta do húmus não animava os barranqueiros a plantarem o milho, a mandioca e o feijão, pois sem a cheia do rio não havia a certeza da colheita. Assim, com todas as agruras que passavam, as populações ribeirinhas preferiam o rio cheio, mesmo que tivessem o desconforto de mudar de endereço. ERAM ASSIM AS ENCHENTES DO VELHO CHICO EM XIQUE-XIQUE.

*Este texto foi publicado inicialmente no blog Xiquexique (www.xiquexiquense.blogspot.com), cujo responsável é
Juarez Morais Chaves.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Mangaba, mucunã e o que mais?

Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostraram que, em testes de laboratório, o extrato da folha de mangaba, na quantidade certa, é mais efetiva no combate à hipertensão do que os medicamentos mais vendidos com essa finalidade, como o Captopril. Ainda faltam os testes clínicos em seres humanos, mas não há dúvida de que os resultados serão os mesmos, já que a planta vem sendo usada com efeitos positivos há muito tempo pelo povo.

A notícia foi dada no Jornal Nacional da TV Globo na noite de ontem. O mesmo grupo de pesquisa constatou que a raiz de mucunã, planta também conhecida como olho-de-boi, faz efeito semelhante, embora tenha que passar por um processo químico para ser tomada oralmente.

Aqui fico pensando com meus botões: quantas e quantas plantas poderiam ser aproveitadas para melhorar a vida da humanidade ou mesmo dos animais? Assim como a mangaba e a mucunã combatem a hipertensão, existem outras para a arteriosclerose, a prisão de ventre, o câncer, a gastrite, a estomatite, a rinite, a artrite e por aí afora. Pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) confirmaram, há pouco tempo, o que o já era do conhecimento popular: a folha de pata-de-vaca é remédio certo para diabetes.

Plantas como a pata-de-vaca, a mucunã e a mangaba ainda existem e podem até ser cultivadas, mas é possível que outras tenham desaparecido pela ação do homem. Quem pode garantir que a destruição do cerrado para implantação da monocultura já não produziu esse efeito? Se isso ainda não aconteceu, em breve acontecerá, caso a devastação não seja interrompida. Tudo muito óbvio, certo? Não é o que parece para aqueles que cultivam grandes plantações de soja e saem por aí de peito estufado, dizendo que o negócio está produzindo emprego, divisas e desenvolvimento. Ah, se fosse verdade... É uma pena, pois muitas espécies vegetais que esses senhores estão exterminando, além do potencial farmacológico, são fontes preciosas de alimentação para as populações mais pobres.

Que me desculpe o leitor pelo palavrão, mas é preciso mudar os paradigmas.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Um brejeiro na carreira do rio Grande

A Maceió era a barca mais charmosa dentre as que entravam pelo rio Grande. Dois conveses, motor potente, rápida, colorida e alegre, sempre embalada por discos da jovem guarda tocados numa radiola. É certo que havia outras maiores, mas essas ficavam no São Francisco, entre Juazeiro e Pirapora, onde a navegação e o comércio eram mais propícios, e não se interessavam pelos afluentes. À noite, a iluminação feérica da Maceió multiplicava-se na água, funcionando como um ímã para os beiradeiros entediados.

Na boca da noite de um dia de novembro de 1968, quando eu iniciava a adolescência, entrei naquela nave fantástica rumo ao desconhecido. O porto era o de Jupaguá, que já se chamou Poço Redondo não sei por qual motivo. Feito brejeiro, como eram chamados pejorativamente aqueles que não viviam na margem do rio, eu observava cuidadosamente os atos e gestos das outras pessoas, temeroso de dar um passo em falso e cair no ridículo. Esse temor era agravado por um excessivo senso de autocrítica que me fora inculcado pela família e a timidez que sempre me acompanhou. Brejeiro, na verdade, eu era mesmo, e a prova disso é que o lugar onde nasci já se chamou Havaí do Brejo Grande. Assim mesmo, com “H”. Qual o problema? Afinal, Bahia também não se escreve com “H”? E olhe que esse nome já representava uma evolução, pois a denominação inicial era simplesmente Brejo Grande. Depois mudou para Cotegipe, em homenagem ao barão do mesmo nome, e Cotegipe continua sendo até hoje. Não se sabe por qual razão, a grafia foi oficializada com “g” e não com “j”, como deveria ser, tratando-se de palavra de origem tupi-guarani. Deve ser coisa de brejeiro.

Sempre observando os que iam à minha frente, passei com cuidado pela prancha de acesso à barca e subi a escada. D. Francisquinha, uma senhora muito simpática que se comprometeu com meus pais a me acompanhar na viagem, às vezes tentava fornecer alguma orientação, mas eu sempre procurava dar a impressão de que já sabia de tudo. Instalado no convés de cima, a mala guardada no camarote, vi os “marinheiros” desatracarem a embarcação, que começou a se mover ao som quase ensurdecedor dos motores em aceleração. A água do rio revolvia-se em redemoinhos e, pouco a pouco, o barranco da margem se afastava. Já não havia terra para pisar e fui tomado por um pouco de medo, mas tive que me conter para não demonstrar minha brejeirice. Até ocorreu-me a sensação de que estava sendo observado por outros passageiros, como se quisessem me surpreender em algum ato falho para se divertirem às custas de um pobre brejeiro. Nada posso afirmar categoricamente a esse respeito, mas que eu tive esse pressentimento, não há como negar.

Fiquei ali parado, em pé, a olhar para o rio e a vegetação da margem, tudo muito bonito de se ver, até que a escuridão da noite escondeu a paisagem e me obrigou a dedicar minha atenção ao interior da barca. Na parte da frente havia, além do compartimento do piloto, alguns pequenos quartos com beliches, que eram chamados de camarotes. No meio do convés, via-se uma espécie de sala relativamente ampla, com mesa e cadeiras, onde os passageiros se encontravam para conversar e fazer as refeições. A parte traseira era também ocupada por camarotes e os lados eram corredores de livre trânsito. Em torno do convés, existia uma grade baixa, onde os passageiros se acotovelavam quando queriam observar a paisagem.

Veio o jantar. Que delícia! Não me lembro muito bem de toda a comida, mas nunca esquecerei os ovos mexidos, que para mim eram novidade, pois só conhecia ovos estrelados inteiros. Parecia que a cada momento minha brejeirice era confirmada, mas eu me mantinha firme, não dava o braço a torcer. Nunca mais encontrei ovos mexidos tão saborosos quanto aqueles da Maceió. Os passageiros falavam de assuntos diversos e eu só ouvia. Quando a barca se aproximou do Soares, um ponto muito sinuoso do rio, a conversa foi silenciada e eu pude perceber uma certa tensão no ambiente. Nada entendi até que alguém resolveu abrir a boca:

- Foi aqui o naufrágio.

Aí então fiquei sabendo que ali mesmo, na curva do Soares, um vapor havia naufragado anos atrás e que várias pessoas morreram. Tive medo. Hoje parece até mentira, mas, por incrível que pareça, o rio Grande já foi singrado por vapores, embarcações maiores do que as barcas.

Eu devia estar muito cansado, pois quando me deitei, nem a lembrança do naufrágio foi capaz de prejudicar meu sono. Ao acordar, na manhã seguinte, estávamos chegando à cidade da Barra, meu destino de viagem, lugar em que eu me submeteria aos exames de admissão no curso ginasial. Para lá acorriam jovens do médio São Francisco em busca de educação, sendo a cidade onde existiam os melhores colégios. Ao observar aquele lugar pela primeira vez fiquei fascinado e, ao mesmo tempo, intimidado. O imenso cais de pedra, com sua bela balaustrada, e os casarões altos com fachadas ornamentadas em alto relevo davam um ar de civilização a que um brejeiro como eu não estava acostumado.

A barca atracou em um ponto quase fora dos limites da cidade, pouco acima do lugar onde o cais começava. Provavelmente para livrar-se da fiscalização. D. Francisquinha contratou os serviços de um carregador de malas e lá fomos nós descendo a cidade até a casa onde eu me instalaria, um pensionato de um tio. Parecia que a cada passo minha timidez aumentava, mas eu procurava me controlar, tentando demonstrar uma naturalidade inexistente. De longe avistei, numa praça movimentada, uma enorme e bela construção avermelhada, que depois soube se tratar do mercado municipal. Quando nos aproximamos, estremeci, ao ouvir uma voz gaiata vinda do cais:

- Ei, brejeiro!

Fitei o chão envergonhado e ouvi novamente:

- Ei, brejeiro!

Um suor frio começava a escorrer da minha testa e naquele instante ouvi um grito mais forte no meio da praça, bem próximo de nós:

- Sou brejeiro, mas tenho dinheiro!

Alívio! Levantei a cabeça e pude ver um rapaz baixote, amorenado, cabelos lisos e peito estufado puxando um jumento que transportava duas bruacas. Foi aí que D. Francisquinha comentou, sem conseguir disfaçar o riso no canto da boca:

- Esses malandros da Barra não deixam os coitados em paz.

Fiquei sabendo que se tratava de gente dos brejos vizinhos que iam ao mercado da cidade para vender seus produtos e fazer as compras de que necessitavam. Eu, que era brejeiro, mas não tinha dinheiro senti despertar meu lado trocista e peguei a rir discretamente, quase fazendo coro aos gaiatos do cais. Mantive-me calado e segui minha viagem mais tranqüilo até o pensionato.

A cidade da Barra tinha começado a me conquistar.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Benjamim Guimarães e os vapores do Velho Chico

João Carlos Figueiredo*

O São Francisco já foi conhecido como o "Rio da Integração Nacional". Isso porque, desde a década de 1920, cerca de 30 vapores e dezenas de barcas de porte médio faziam a rota de Pirapora, em Minas Gerais, a Juazeiro, na Bahia, transportando passageiros e cargas por uma extensão superior a 1.300 quilômetros.

Alguns desses vapores foram trazidos do Mississipi, Estados Unidos, onde navegavam desde o século XIX e foram aposentados, com o surgimento das embarcações movidas a óleo diesel. O vapor Benjamin Guimarães foi um deles; construído em 1913, passou primeiro pelo Amazonas e chegou a Pirapora em meados da década de 1920.

A história dos vapores está intimamente ligada à aristocracia social do Nordeste e ao desmatamento nessa região do São Francisco. À primeira, porque em seus camarotes viajavam os nobres de Barra, na Bahia, e de outras cidades da nobreza da época, em suas andanças pelas cidades do oeste baiano e mineiro. Ainda hoje Barra ostenta seus casarões suntuosos e o que resta de sua aristocracia e tradições burguesas.

Mas são os danos ao meio ambiente que marcaram a história desses vapores. Consumindo um metro cúbico de madeira por hora, pode-se imaginar o custo ambiental de uma viagem de mil e trezentos quilômetros! Primeiro foram as matas ciliares, derrubadas sem piedade por lenhadores que vendiam a madeira na passagem dos vapores.

Se inicialmente havia algum critério na escolha dos melhores troncos, aqueles que produziam mais calor nas caldeiras, com o tempo essa madeira foi se escasseando e já se aceitava qualquer tipo de arbusto derrubado, desde que os barcos não parassem de circular, escoando a produção do Nordeste e do estado de Minas Gerais.

Depois, com a extinção da mata ciliar em quase todo o trajeto dos vapores, passou-se a atacar as madeiras mais nobres da caatinga e, finalmente, dos cerrados. O desastre foi tremendo e pode-se constatar ainda hoje a devastação causada por esse meio de transporte. É certo que não foi o único, pois muitas indústrias ainda hoje se alimentam do carvão produzido nos fornos que se ocultam nessas paragens... mas o vapor teve seu papel preponderante para que, na década de 1980, os militares determinassem a extinção dessas emarcações tradicionais do São Francisco.

Restou o Benjamin Guimarães... tendo passado por vários proprietários, públicos e privados, e por duas reformas restauradoras, o vapor permanece na ativa, agora como barco de turismo, utilizando madeira de reflorestamento de eucalipto, e percorrendo o trecho que lhe coube, de Pirapora a Januária, ambas cidades mineiras.

Com a construção da represa de Sobradinho, no final da década de 1970, o trecho navegável para os vapores se resumiu a esse pequeno trajeto. As enormes ondas provocadas pelos ventos tornaram a navegação no lago de 350 km de extensão e até 60 km de largura, perigosas demais para essas embarcações; e o assoreamento fez o resto.

Atualmente, existem trechos do rio cuja profundidade máxima não passa dos três metros! Mesmo nos trechos navegáveis, percorridos pelo Benjamin Guimarães, sua passagem só é possível com a abertura das comportas de Três Marias e o aumento do volume de águas correspondente a uma lâmina de água de quase um metro!

Os vapores ficaram na memória dos saudosistas e na lembrança de seus comandantes... a nova era do agro-negócio e das rodovias sepultou essas embarcações, e mesmo o Benjamin Guimarães tem seu papel questionado por ainda utilizar madeira, mesmo de reflorestamento, como combustível de suas caldeiras... afinal, sua operação ainda seria rentável, ou ela se sustenta nos subsídios públicos que viabilizariam os negócios turísticos de Pirapora?

Uma certeza permanece: a navegabilidade do Velho Chico é um propósito louvável e deveria estar incluída em um projeto de revitalização integrada, compreendendo ações de despoluição das águas, de contenção imediata dos desmatamentos e de recuperação das áreas degradadas. Sem isso, como se pensar em distribuir as suas águas?

* O autor, que é ambientalista, canoísta, espeleólogo, mergulhador e montanhista, realizou, em 2009, uma viagem de canoa da nascente à foz do rio São Francisco. Este artigo foi escrito especialmente para o Vapor Encantado.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Viagem de canoa da serra da Canastra ao oceano Atlântico

O Correio Braziliense publica hoje matéria sobre a aventura, no rio São Francisco, do ambientalista João Carlos Figueiredo, 60 anos, que percorreu de canoa, em 99 dias, 2.500 quilômetros entre São Roque de Minas, onde se situa a serra da Canastra, e a foz em Piaçabuçu, Alagoas, aonde chegou em 7 de dezembro passado. “Ele iniciava o dia por volta das 4h, remava por até 10 horas e só parava no fim da tarde, para se alimentar e descansar”, diz o jornal.

É inevitável lembrar a viagem do aventureiro inglês Richard Burton que, em 1867, saiu de Sabará, também de canoa, descendo o rio das Velhas e indo, São Francisco adentro, parar na praia. A aventura foi relatada em um diário de Burton que se transformou no livro "Viagem de canoa de Sabará ao oceano Atlântico".

De João Carlos Figueiredo, recolhi alguns comentários reveladores feitos no sítio do Correio Braziliense, a propósito da matéria publicada. Leia a seguir.

Realidade geográfica
“A tradicional divisão do rio em quatro sub-regiões já não corresponde à realidade geográfica, política, econômica e social. As grandes represas de Três Marias, Sobradinho, Itaparica e Xingó modificaram definitivamente essa situação, criando áreas confinadas com padrões sócio-ambientais próprios.”

Barragens
“Hoje existem oito barragens no rio São Francisco: Três Marias, Sobradinho, Itaparica, Moxotó, Paulo Afonso (4) e Xingó. Além de construir mais quatro turbinas em Xingó, o governo pretende construir mais três barragens em Santa Maria da Boa Vista, Orocó e Pão de Açúcar, acabando de vez com a piracema.”

Fiscalização
“A região de Alagoas que mencionei como um paraíso ambiental é Marituba, uma APA que, lamentavelmente, não tem nenhuma fiscalização e por isso suas margens estão sendo queimadas e transformadas em pastagens, sem que nehuma autoridade ambiental tome qualquer providência!”

Revitalização
“A despeito do que afirma o governo, não existe um projeto de revitalização para o rio São Francisco. O que se observa são ações isoladas, de pequeno impacto ambiental, como é o caso das dragas que fazem o aprofundamento da calha do rio entre Barra e Bom Jesus, movendo a areia de um lado para outro.”

Pesca predatória
“Em toda a extensão do rio São Francisco, que percorri em minha expedição, só encontrei um barco do IBAMA; nenhuma fiscalização eficaz para coibir a pesca predatória, que é feita com enormes redes de arrasto, até mesmo durante o "defeso", no período da piracema.”

Carvão
“As indústrias de siderurgia e mineração são usuárias do carvão produzido nos fornos clandestinos do sertão baiano, e seguem em grandes carretas durante a noite, à revelia da lei e com o conhecimento de todos. Assim, o Cerrado e a Caatinga são, gradativamente, extintos em nosso país...”

Transposição
“O meu maior questionamento com relação às obras da Transposição está relacionado à falta de água nos mesmos territórios de onde a água será retirada. Em Cabrobó, Santa Maria e Orocó, só para citar alguns municípios, grande parate da população ainda depende dos carros pipa para ter água potável!”

Oeste baiano
“Um aspecto da maior relevância e não mencionado na reportagem está relacionado com os conflitos fundiários na região do oeste baiano, onde os movimentos sociais de quilombolas e indígenas sofrem as agressões do agronegócio e são humilhados em sua própria terra. É uma tragédia esquecida por todos...”

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A cara do São Francisco

O rio São Francisco nunca mais foi o mesmo depois de Francisco Guarany. Ele criou um estilo de carranca que acabou por se transformar numa espécie de marca do Velho Chico, sendo imitado pela maioria dos escultores de figuras de proa que vieram depois. “O elemento plástico mais característico da escultura de Guarany é o tratamento que dispensa à cabeleira das carrancas, espessa ou em relevo acentuado, abundante, cobrindo quase todo o pescoço”, observa o pesquisador Paulo Pardal, no seu livro “Carrancas do São Francisco”. Nas raras vezes em que a cabeleira não aparece, foi “pra sair mais barato”, nas palavras do próprio Guarany. É possível que não se encontre em qualquer criador de carrancas a expressividade e a originalidade verificada nas esculturas de madeira zooantropomórficas imaginadas e executadas por esse artista do rio Corrente.

Onde estão as carrancas feitas por Guarany? Estima-se que o mestre de Santa Maria da Vitória construiu centenas delas, tendo sido talvez aquele que mais teve esculturas ornamentando as proas de barcas do Velho Chico. Algumas estão em museus, outras nas mãos de colecionadores, e muitas simplesmente não existem mais.

A primeira carranca de Guarany, “um busto de negro ou de caboclo”, nas suas próprias palavras, foi feita em 1901 para a barca Tamandaré, quando ele tinha apenas 17 anos de idade. A segunda se concretizou em 1905, para a mesma barca, que se acidentou, mudou de dono e passou por reformas, recebendo o nome de Nacional. Veio a terceira em 1907, e as encomendas foram chegando de vários pontos do Velho Chico e afluentes – Juazeiro, Januária, Barreiras etc.

As carrancas começaram a desaparecer do São Francisco no início da década de 1940, quando as barcas tradicionais, movidas a remo e varas, passaram a ser substituídas por embarcações a vela e a motor. A partir dessa época, Guarany, que havia produzido quase cem figuras de proa, passou cerca de dez anos sem criar uma única escultura, voltando ao exercício de sua arte no início da década de 1950, quando começou receber encomendas de colecionadores. Dessa época em diante, ele produziu centenas de carrancas.

Não é do meu conhecimento a existência de algum museu que tenha como objetivo reunir, dentro do possível, a obra de Guarany, o que seria uma iniciativa de grande mérito, seja por parte do poder público ou de particulares. Inquestionavelmente, trata-se de um patrimônio importantíssimo da cultura brasileira que não pode e nem deve permanecer invisível.

O Velho Chico e seu povo agradecem.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Um livro pra devorar

Acabo de receber a informação de que foi publicado o livro “Rio São Francisco – História, Navegação e Cultura”, escrito por Zanoni Neves, barranqueiro de Pirapora e conhecedor profundo da vida no velho rio. É uma grande notícia. Conheço alguns de seus trabalhos e sei que o autor tem todas as qualificações para tratar de um assunto como esse. A obra tem a chancela da editora UFJF, podendo ser encontrada nas livrarias universitárias. Prometo publicar aqui, em breve, uma resenha do livro.

Zanoni Neves também é autor dos livros "Na Carreira do Rio São Francisco" (Editora Itatiaia, 2006), “A Barca Aurora” (Mazza Editora, 1991), “Navegantes da Integração” (Editora UFMG, 1998, Coleção Humanitas) e “Os Remeiros dos São Francisco” (Editora Saraiva, 2004, Coleção Que história é esta?), além de diversos artigos em revistas especializadas. É formado em Ciências Sociais na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da qual foi professor, e tem mestrado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi também professor da Comissão de Folclore/Centro Universitário Newton Paiva, em que coordenou o Curso de Especialização em Cultura Popular – pós-graduação lato sensu.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Usinas nucleares: prós e contras

Replico aqui duas entrevistas feitas pelo repórter Jailson da Paz e publicadas no jornal Diário de Pernambuco em 15/02/2009, a respeito da implantação de usinas nucleares no Velho Chico. Apesar da data, são atualíssimas.

Entrevista // Clóvis Cavalcanti

"Nossa vocação é usar energia do sol"

Economista ecológico, professor da UFPE e pesquisador da Fundaj, Clóvis Cavalcanti é um dos críticos à instalação de uma usina nuclear no Brasil. Para ele, o país vai na contramão da história ao optar por esse modo de produção de energia elétrica.

Como o senhor vê a possibilidade de se construir uma usina nuclear no estado?

Algo fora de sentido. Nossa vocação é usar energia do sol. Estamos atrasadíssimos. Países que não têm sol o ano inteiro, como Canadá, Alemanha e Suíça, estão à frente. O Brasil fica discutindo algo já debatido e que não é unanimidade. É uma visão tacanha, limitada e momentânea. Temos que ir em busca de energias alternativas, que não a nuclear.

E se vier a ser construída, como se cogita, próxima ao Rio São Francisco?

A situação parece ainda mais grave. É preciso saber se a população aceita a proposta. Em outros países, a escolha da energia nuclear é discutida em plebiscito. Aqui não se pensa nisso. Toca-se os projetos nos gabinetes, indo de encontro a princípios democráticos. Se fosse no regime militar, daria para entender.

O senhor tem afirmado que, a exemplo de uma usina nuclear, os novos projetos em Suape, como a refinaria, podem resultar em problemas ecológicos. Quais?

A construção de uma refinaria vai estimular um consumo maior de petróleo na região, quando precisamos reduzir esse consumo, e provocar o aumento da emissão de gás carbônico. Isso é ruim, sobretudo para o Nordeste, uma das áreas que mais sofrerão os efeitos do aquecimento global no mundo. Não sou eu que digo isso. São as previsões dos maiores estudiosos do clima.

As atividades da refinaria trarão prejuízos ao meio ambiente?

Haverá risco maior de acidentes com a movimentação de navios petroleiros. Esse tipo de acidente é tão comum hoje, que a imprensa não divulga os pequenos vazamentos de combustível. Se houver um derramamento poderá afetar as praias. Mesmo sem acidentes, acredito que, a longo prazo, Suape vai ter reflexos negativos para o turismo no litoral. Qual o turista que, na hora de descansar, vai querer ver indústria e poluição?

Entrevista // Carlos Brayner

"Novos reatores são 10 vezes mais seguros"

Carlos Brayner, doutor em engenharia nuclear, é um defensor da instalação de usinas nucleares no Brasil. Integrante do grupo de engenharia de reatores da UFPE, ele define como limpa e segura a produção de energia por essas unidades.

Como o senhor vê a proposta de se implantar uma usina nuclear em Pernambuco, especificamente às margens do São Francisco? É um bom negócio?

A implantação de uma usina nuclear requer uma área pequena e certa quantidade de água para refrigerar os condensadores de vapor. Portanto, um sítio às margens do rio é uma opção, em princípio, viável. Penso que a instalação no litoral é mais interessante, sob vários aspectos. O país possui tradição neste tipo de instalação e isso implica riscos menores para a população. Além disso, no litoral, a usina não depende do regime de vazão do rio, que pode sofrer períodos críticos de abastecimento.

A produção de energia a partir de usinas nucleares é segura, hoje?

As usinas nucleares funcionam há mais de 50 anos e, atualmente, há quase 440 espalhadas em mais de 30 países. Elas produzem 16% da energia elétrica do mundo, de forma limpa e segura. Houve um acidente de proporções graves na Ucrânia durante todo este tempo, que somado ao estigma das bombas atômicas, contribuiu para a descrença neste tipo de usina. Entretanto, a nova geração de reatores é pelo menos 10 vezes mais segura do que os projetos de reatores daquela época.

Quais os prós e contras de construir uma usina nuclear?

O Brasil possui o domínio científico e tecnológico de todo o ciclo do combustível nuclear, que é a parte sensível na construção e operação de um parque de usinas. Tem urânio em abundância. Manter este conhecimento e a tecnologia necessária para utilizá-lo significa a garantia de sua soberania nacional no que diz respeito à geração de energia. O ponto crítico no uso dos reatores atuais é o gerenciamento do lixo radioativo produzido pela usina. Isto não significa que a população esteja sujeita a altos riscos com a operação das usinas hoje.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Usinas nucleares

O jornal Folha de S. Paulo informou, na última sexta-feira, que o rio São Francisco será contemplado com duas usinas nucleares até 2014. Minha primeira reação foi de incredulidade, depois senti medo, e até agora não tenho opinião formada sobre o assunto. É bom que tudo seja analisado com muito carinho, levando-se em conta todos os riscos envolvidos e não deixando de considerar outras alternativas de geração de energia, especialmente aquela que aproveita o calor do sol. Nosso Velho Chico, já tão estropiado, não pode, mais uma vez, acabar como vítima de interesses particularistas.

Tratando-se de usina nuclear, todo cuidado é pouco. Ainda mais, na terra do Romãozinho.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Romãozinho segundo Saul Martins

Há quatrocentos e tantos anos, vivia uma família de lavradores no vale do Carinhanha, perto de Cocos, no Estado de Bahia. Constituía-se o pequeno grupo de três pessoas: marido, mulher e um filho, rapazola de seus 12 a 14 anos.

O menino chamava-se Romão, ou Romãozinho. Era travesso e mentiroso; muitas vezes fora o motivo de brigas em casa, pois contra a mãe imaginava enredos, bem forjados, para contá-los ao pai, homem trabalhador e honesto, mas grosseiro o mais que podia. Acresce ainda que acreditava sempre nas invencionices do filho, suposta vítima de maus tratos nunca havidos.

Certo dia, a mãe de Romãozinho determinou que ele fosse à roça levar almoço ao pai. O menino tomou o prato e partiu. Na primeira curva, porém, assentou-se num toco e devorou toda a comida, deixando para o pai apenas os ossos da galinha que sua mãe cozinhara naquele dia. Ao chegar ao destino, entregou o prato ao pai, como se nada houvesse acontecido. Calmamente, o homem encosta o machado, assenta-se à sombra do arvoredo e descobre o prato a fim de matar a fome. Ao verificar o logro, indignado, pergunta ao filho que que representava aquilo. Romãozinho, vestindo-se de anjo, responde-lhe que não sabia, pois da mesma maneira que recebeu o embrulho da mãe, lh'o entregara. Podia adiantar, apenas, que naquele dia, havia sido preparado arroz com galinha.

O pai de Romãozinho regressou à casa, imediatamente, e lá não quis saber de explicações. Chicoteou a esposa o mais que pôde.

A pobre mulher, vendo-se castigada assim tão injusta e degradantemente em vista de traição da parte do menino, filho de suas entranhas, ajoelha-se ali mesmo e exclama, com as mãos para os céus:

– Deixe estar, Romãozinho, que você não terá o céu, nem o inferno. Tenho fé em Deus, meu filho, que você há de ficar zanzando pelo mundo, a aborrecer as pessoas na terra!

Era a praga da mãe contra o filho maldito.

Naquele mesmo instante morria Romãozinho.

E passou a cumprir a sentença.

Até hoje ele existe naquela região, se bem que conhece o mundo inteiro, pois dá notícias de tudo e de todos.

Não gosta de cidades. Prefere a vida das fazendas, principalmente os arredores de Januária, Manga, Poções, Cocos e Imburanas.

Costuma chegar a um sítio e lá ficar muito tempo, cometendo estrepolias.

Respeita muito as donas de casa e as ajuda nos serviços domésticos, rachando lenha, carregando água, lavando vasilhas na fonte ou varrendo a casa e os terreiros. Serve de mensageiro, levando cartas a pessoas distantes e, quando lhe pedem, arranja dinheiro emprestado, retirando-o de cofres e gavetas de algum ricaço alhures, voltando a colocá-lo no dia marcado pelo seu solicitante e benfeitor, no mesmo lugar e da mesma forma, isto é, às escondidas.

E ai de quem faltar com a palavra!

É invisível, mas sua presença é notada por seus assobios, ou quando trabalha, pelo movimento dos objetos que utiliza.

Quando o aborrecem, comete desatinos, atirando pedras no telhado, quebrando pratos, enchendo as panelas de estrume de gado, às vezes nelas satisfazendo suas necessidades fisiológicas.

Gosta de freqüentar olarias e modelar grosseiros trabalhos de cerâmica. Se não lhe amassam o barro, zanga-se e danifica os tijolos frescos sulcando-os com os dedos, ou esborrachando-os com os pés.

Sente fome e sede como qualquer vivente, e reclama a sua alimentação na hora certa, primeiro que todos. Do lugar de costume, Romãozinho apanha a comida e se dirige a alguma sombra próxima. As pessoas vêem o prato suspenso na altura das mãos de um rapazinho, movimentar-se rumo ao lugar escolhido. Não gosta e nem admite que se preparem galinhas.

Nunca envelhece e continua pensando e agindo como dantes fora.

Dizem, até, que adoece e quando leva uma estrepada, um ferimento qualquer, uma contusão, procura ele o remédio, às vezes chora e soluça.

(Saul Martins)

Romãozinho segundo Wilson Lins

A história de Romãozinho é curta e simples. Contam que ele era um menino muito atentado, espírito inquieto, amigo dos brinquedos perigosos. Era filho de um casal de camponeses. Seu pai trabalhava longe do rancho, e ele ficara encarregado de levar-lhe a comida todos os dias, no roçado. A mãe sofria muito com as peraltices do filho e a brutalidade do marido, que a espancava por qualquer “dá cá aquela palha”. Romãozinho gostava de ver a mãe apanhar, razão por que estava sempre provocando briga entre os pais.

Todos os dias, quando ia levar a comida para o pai na roça, o endiabrado garoto comia metade pelo caminho, de modo que o pai tinha sempre motivo de espancar a mulher quando chegava em casa à noite, alegando que ela era mesquinha e queria matá-lo de fome. A mulher retrucava que mandara o suficiente, e isto aumentava a raiva do marido. Certo dia, a pobre mãe matou uma galinha e preparou-a a capricho, mandando-a inteirinha, para o marido. Romãozinho comeu tudo no caminho e, chegando no local do trabalho, onde o pai, faminto, o esperava, apresentando-lhe apenas os ossos da galinha, disse:

– Ela manda dizer que se contente com os ossos, pois a carne guardou para seu vigário.

Mal acabou de ouvir o que o filho lhe dizia, o homem saiu como louco e, chegando em casa, matou a mulher. No momento exato em que o marido matava a esposa, o mau filho estourou, deixando atrás de si um horrível cheiro de enxofre. Desse dia em diante, Romãozinho começou a aparecer às pessoas, fazendo boiadas arrebentarem os currais, virando panelas no fogo, furando potes de água e jogando pedras nos telhados das casas.

Ele virou “bicho” aos doze anos de idade. São passados mais de duzentos anos e ele continua do mesmo tamanho, com a mesma fala. Romãozinho é um terror. Quando toma birra por uma pessoa, ela tem de mudar de terra. Conhecemos um casal de roceiros que abandonou tudo que tinha em Malhada, no alto São Francisco, por causa dele. O marido disse que via a hora de sua mulher morrer de tanto apanhar do malvado. O pobre vivia escondendo os chicotes, cabos de vassouras, cordas, etc., pois quando Romãozinho chegava, sem que ninguém o acionasse, o chicote se desprendia do prego onde estava pendurado e, sozinho, começava a bater na mulher. Quando não era assim, disse-nos o roceiro, era a sua viola que saía do grampo e começava a tocar, flutuando no ar. Se eles ficavam com medo, o invisível violeiro soltava gargalhadas zombeteiras, que estrondavam pela casa toda. A perseguição durou tanto que eles tiveram de mudar de terra.

Um outro depoimento que ouvimos sobre Romãozinho apresenta o diabrete pondo em polvorosa todo um povoado: durante mais de uma semana Romãozinho atormentou o arraial de Icatu, apagando o fogo das cozinhas, suspendendo os vestidos das moças no meio da rua, derrubando todas as mercadorias das prateleiras dos armazéns, tocando o sino da igreja, enfim pondo em desassossego toda a população. Foi preciso chamar um padre na Barra para benzer o vilarejo. Mesmo depois da intervenção do padre, Romãozinho continuou, vez por outra, a visitar o lugar, cometendo desatinos.

No seu afã de distribuir malefícios, Romãozinho sincretiza com o próprio saci, chegando em muitos casos a usar cachimbo e mascar fumo de corda. Há aparições de Romãozinho que são verdadeiros plágios da caipora, como as vezes em que ele aparece nos acampamentos, colocando borralho quente nas virilhas dos tropeiros adormecidos. Meninote acaboclado, Romãozinho lembra, na estatura, na cor e nas diabruras, o caboclo-d'água e a caipora, com a diferença de não morar dentro dos rios, como o primeiro, nem saber cavalgar caitetus, como o último. Como no tempo em que era gente, Romãozinho ainda hoje não dispensa uma baladeira, e com ela distribui pedradas certeiras pelos telhados das vilas e fazendas. Uma de suas brincadeiras prediletas é trepar, sem ser convidado, na garupa dos viajantes, viajando léguas e léguas sem ser notado. O viajante só sabe que andou com Romãozinho na garupa quando pára, pois o diabrote, antes de saltar para o chão, dá uma palmadinha de agradecimento no ombro do cavaleiro, que, voltando-se e não vendo ninguém, adivinha logo que se trata dele. Em ocasião como esta, o viajante deve rezar imediatamente o Creio em Deus Padre (o Credo), para evitar que o espírito maligno não queira ficar freguês de sua garupa, pois, segundo é voz corrente no vale, dá azar andar em companhia de espíritos sujos.

Às margens do São Francisco há lugares certos onde o viajante pode encontrar canoeiros profissionais que ganham a vida transportando gente e animais de um lado para outro do grande rio. São os passadores. O passador mora perto do rio e sua canoa está sempre amarrada ao pé da casa. Ao chegar, o viajante, vendo a embarcação ancorada na margem oposta, grita uma vez ou duas, conforme a necessidade:

— Oôô passador!

E o passador vem “passar” o viajante. Mas em tempo de “aparição” de Romãozinho, o “passador” toma trote toda hora: o espírito maligno, para aperrear o homem, grita da outra margem, à maneira dos viajantes; o passador corre a atender, mas chegando no lugar de onde partiu o apelo não encontra ninguém. Para maior desgosto do canoeiro-passador, Romãozinho solta uma gargalhada gostosa, do meio do mato.

Folião inveterado, Romãozinho não perde festa. Onde ronca uma sanfona o diabinho se apresenta, levantando poeira, participando da alegria dos homens. A sua presença, nas festas, é pressentida pelas diabruras que lhe são características. Quando o candeeiro apaga três vezes, já se sabe: Romãozinho está no baile. Outro sinal da presença do “maligno” numa festa é a cachaça desaparecer rapidamente dos garrafões. Com ele num forró, os garrafões de aguardente secam num abrir de olhos. Beberrão de raça, Romãozinho deixa os festeiros sem pinga para animar a festa. Ele bebe por todos. E, depois de bêbado, se escorna a um canto, roncando alto, enquanto a festa continua ao som da sanfona e o arrasta-pé prossegue na sala de chão batido. Bêbado, Romãozinho é inofensivo: dá para dormir, que é um nunca acabar. Sabemos de um caso em que ele, depois de secar três garrafões de catuzeira [1], dormiu três dias e três noites, e quando por fim acordou, com voz pastosa disse, fugindo:

– Vomembora senão me acabo, pois nunca vi cachaça mais ruim.

Contam que de outra feita, ao acordar da ressaca, ameaçou:

– Se da próxima festa que eu vier aqui, não encontrar uma garrafa de januária só para mim, deixo todo mundo nu no meio do salão.

Romãozinho é popular em todo o vale, e dele contam histórias que dariam para encher um volume. É um personagem querido, ao mesmo tempo que temido, cujas aventuras são o regalo da imaginação popular e servem de assunto de conversa em todas as rodas. Inimigo natural do Bom Jesus da Lapa, certa vez ele foi em romaria ao santuário milagroso só para perturbar os romeiros. Durante os dias que passou na Lapa, roubou as esmolas dos cegos, provocou brigas no adro da igreja, de maneira que nesse ano não houve recolhimento de espírito para os que tinham ido em busca de paz.

Autêntico espalha-brasa, compromete com as suas arrelias os céus e a terra. Sozinho vale por uma legião de demônios. O inferno é pequeno para as suas diabruras e, por isso, ele faz do São Francisco o seu paraíso.

Nota

1. Cachaça ordinária, o nome vem de Icatu, lugar onde era fabricada a pior cachaça da região.

(Wilson Lins)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Histórias de arrepiar

Eu acreditava no Romãozinho só um pouco. Mesmo ouvindo as histórias que eu ouvia desde muito pequeno, aquela entidade temida pelo povo do sertão sanfranciscano parecia algo distante que nunca chegaria perto de mim. Algumas vezes, eu sentia medo. Era quando corria a notícia de que o menino encantado e invisível, amaldiçoado pela própria mãe, havia se apossado de uma casa da cidade ou seus arredores e começara a praticar seu conhecido e desconhecido repertório de diabruras: colocar estrume nas panelas que cozinhavam no fogão, atirar pedras no telhado, jogar objetos dos moradores no quintal, mudar móveis de lugar. A criatividade do capetinha para infelicitar as pessoas era ilimitada e aterrorizante, ainda mais sendo ele invisível e imprevisível.

Nessas ocasiões, meu pai sempre lembrava uma história. O Romãozinho havia se instalado numa casa de fazenda e já estava chamando a atenção da cidade e seus arredores com as inacreditáveis narrações que se espalhavam rapidamente sobre suas estripulias. Querendo tirar prova dos fatos, uma comitiva de senhores respeitáveis da cidade partiu numa manhã, bem cedo, para a dita fazenda. Ao chegarem, amarram seus cavalos em troncos de árvores defronte à casa onde o terrorista sobrenatural se hospedara e trataram de fazer a verificação imediatamente. Observaram a sala, e nada. Verificaram a cozinha, tudo normal. Entraram pelos quartos, e nem sinal do Romãozinho. Quando se aproximaram todos de um cômodo que estava repleto de algodão colhido naqueles dias pelo proprietário, a surpresa. Flocos e mais flocos brancos, sem que houvesse qualquer sinal de ventania, iam-se transformando em bolas de fogo e voando na direção dos incrédulos. Antes que morressem queimados, correram para fora da casa e... outra supresa. Os cavalos tinham sido desamarrados e sumiram na mata.

Eu sempre ouvira essa história com toda reverência e respeito. Afinal, o narrador merecia incondicionalmente minha confiança, não havendo porque dele duvidar. Depois, quando não se ouvia mais falar no Romãozinho e a vida voltava ao normal, eu perdia o medo e recaía nas traquinagens de sempre, já que nem os adultos se lembravam mais do diabinho e deixavam de lado as ameaças envolvendo seu nome. Era como se aquele filho das trevas não existisse, até que ele fizesse outra visita inesperada a alguma residência das proximidades.

Lembro-me da última vez que isso aconteceu, pelo menos até eu deixar a cidade em busca de outros destinos. Eu estava entrando na adolescência, aquela fase em que os valores e as crenças começam a passar por mudanças. Já não respondia como antes ao controle que os adultos tentavam exercer e sentia-me quase imune aos perigos. Então, fui à luta.

Segui numa comitiva de garotos de minha idade para enfrentar a fera, caso ela fosse capaz de dar as caras a tão intrépidos guerreiros. No fundo, nossa valentia derivava de uma certa descrença que, àquela altura, passamos a ter no Romãozinho. Havia passado tanto tempo de sua última aparição, que já nem o temíamos. São as tais armadilhas da memória. Chegamos. O silêncio dominava o ambiente, os moradores não davam sinal de vida.

- Romãozinho não existe! – gritei atrevido no momento em que colocava o pé direito no batente da porta observando o telhado da casa por dentro.

Foi das proximidades do telhado, cerca de trinta centímetros abaixo da cumieira, que eu vi surgir do nada um torrão de barro, aproximadamente do tamanho de uma bola de pingue-pongue. Ela veio zunindo na minha direção, numa velocidade aterrorizante, como se fosse atingir minha testa, mas, não sei por qual motivo passou bem perto de minha cabeça e foi se espatifar no terreiro em frente.

Voltei o mais rápido que pude para casa e nunca mais tive dúvidas sobre a existência do Romãozinho.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Cem anos de atraso


Na minha infância, eu ouvia dos mais velhos que quem matasse um urubu estava condenado a “cem anos de atraso”. É fácil compreender: o catartídeo negro sempre exerceu um papel da maior relevância no meio rural, o de higienizador, ao eliminar a carniça, os corpos apodrecidos de animais mortos. A sabedoria popular tratou então de achar um meio de proteger os urubus, na falta de sanções do Estado contra quem os ameaçasse, apelando para esse recurso ideológico de grande efeito.

Faço agora uma adaptação, transformando em praga aquilo que já foi tido como uma fatalidade para quem descumprisse o preceito. Nunca fui e não sou de rogar praga, mas vou abrir uma exceção, diante da passividade do Estado na proteção do patrimônio natural e do seu claro favorecimento à monocultura de exportação que está destruindo o cerrado brasileiro.

Aí está minha praga: cem anos de atraso para quem derrubar um pequizeiro. Pode ser que isso de nada adiante e a monocultura de exportação, tal qual uma metástase cancerosa, continue invadindo irresponsavelmente as terras dos gerais, mas meu desabafo fica registrado. Se não servir para, ao menos, provocar uma reflexão em alguém, será útil na pacificação de minha consciência.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Senhora do mundo e do Velho Chico

Fiz referência anteontem a Joana Camandaroba, a propósito da biografia de Deocleciano Martins de Oliveira. Hoje a professora ocupa o centro do palco, sendo ela própria, aos 95 anos de idade, uma referência do médio São Francisco.

Nasceu na pequeníssima Utinga, entre Xique-Xique e Barra. Sua mãe grávida havia feito a promessa de participar da roda de São Gonçalo, na véspera do dia de São João, para que seu parto fosse bem sucedido. A professora Joana esclarece: “A dança de São Gonçalo é a derradeira dança como oferenda litúrgica que possuímos. Na Bahia setecentista, dançava-se em plena missa. Por ser irreverente e supersticiosa, a dança mudou-se para o interior. Não se dança por distração, dança-se por promessa.”

Deu certo. Ainda enquanto dançava, na madrugada de 24 de junho de 1914, dia de São João, d. Maria de Morais sentiu as dores do parto, indo de imediato para casa para que nascesse em paz a menina.

Joana conheceu o mundo inteiro. Patrocinada pelo pai, Antônio Luis Camandaroba, que enriqueceu no negócio da carnaúba, viajou pelas américas do Sul e do Norte, passou pela Europa, tendo se encontrado em audiência com o papa Pio XII, visitou o oriente médio e foi até o extremo oriente. Admirou-se com a riqueza das igrejas peruanas, viu as relíquias do Vaticano, os tesouros culturais de Portugal, Espanha, Itália, França, Grécia, Alemanha, Países Baixos e Turquia, aproximou-se da esfinge e das pirâmides do Egito e deslumbrou-se com monumentos no Japão e a magnífica muralha da China. Bebeu da cultura dos quatro cantos da terra, mas nada nesta vida a encanta mais do que a causa da educação.

Depois da escola normal, no Colégio Santa Eufrásia, em Barra, partiu com a irmã Alzira, em 1933, para Formosa do Rio Preto, cidadezinha isolada nos chapadões do oeste baiano. Foram sete dias de viagem a cavalo entre buritizais, dormindo ao relento, sob as estrelas. A viagem de volta, descendo o rio de balsa, alguns anos mais tarde, foi outra aventura que não esquece. Transferiram-se – ela e a irmã - para Pilão Arcado, graças à intervenção do lendário Coronel Franklin, onde permaneceu por dois anos. Alzira casou-se e lá ficou, Joana pegou o caminho de Santa Rita de Cássia, às margens do Rio Preto como Formosa. Em 1940, partiu para Barreiras, à beira do Rio Grande.

A professora relembra com saudade de Barreiras: “Era o tempo de Geraldo Rocha, Antônio Vieira de Melo (pai), Alfredo Jacobina, Orlando Rocha, Sabino Dourado, Leovegildo Figueiredo, Abelardo Alencar, Aníbal Barbosa, João de Oliveira, sem falar em Antônio Balbino de Carvalho, ministro de Estado de Getúlio Vargas, Tacilo Vieira de Melo, líder do governo Juscelino Kubitschek”.

Em 1945, voltou à Barra, onde consolidou sua obra de educadora e benfeitora dos necessitados e lá vive até hoje.

A história é longa e cheia de peripécias, merecendo uma biografia volumosa, mas vou parar por aqui. A professora Joana publicou um delicioso relato de sua vida sob o título “Memórias da Dinda”, prefaciado por Wilson Lins, o renomado escritor de Pilão Arcado, entretanto acho que é pouco, é preciso entrar mais nos detalhes e contar outras histórias. Ela merece.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Bronze no país das carnaúbas

Folheando o livro “Barra – Um retrato do Brasil”, da professora Joana Camandaroba e do frei Arlindo Itacir Battistel, encontrei uma biografia de Deocleciano Martins de Oliveira. Coisa pequena, porém reveladora. Para o leitor que não o conhece, transcrevo os dois parágrafos iniciais:

“Desembargador Deocleciano Martins de Oliveira. Gênio da arte poética, escultor e desenhista. No palácio da Justiça no Rio de Janeiro, figura extraordinária estátua representando a Justiça. Em toda a região são-franciscana, Mato-Grosso, Rio de Janeiro há marca em sua passagem, tais as lindas estátuas em bronze: São Francisco, São João, Senhor Ressuscitado, o busto de Dr. José Ferreira Muniz, o busto de Dom João Muniz, os bustos dos barões do império, figuras nos chafarizes e jardins de nossa cidade.
Em Três Marias, Lapa do Bom Jesus, Juazeiro, Paulo Afonso encontra-se um pouco da alma genial desse artista”.

O homem foi um “monstro”, uma “aberração da natureza”, tudo no bom sentido. Quase que completamente esquecido no país, Deocleciano produziu incontáveis e valiosas obras de escultura, entre elas os doze apóstolos que decoram a entrada da gruta de Bom Jesus da Lapa e as estátuas que ornamentam o Palácio do Justiça no Rio de Jeneiro. Na literatura, deixou diversos livros com temáticas relacionadas à vida no rio São Francisco e seu folclore, tais como “No país das carnaúbas”, “Marujada”, Caboclo d´água” e “Os romeiros”, entre outros.

Tendo nascido na Barra em 1906, Deocleciano mudou-se aos 17 anos para Cuiabá, depois que o comércio de seu avô, o capitão Joaquim Vim Vim, faliu e a família foi à bancarrota. Ao concluir o curso ginasial, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde, em 1931, diplomou-se em Estudos Jurídicos e Sociais. Foi auditor de guerra, comissário de polícia, juiz de direito do antigo Distrito Federal e, finalmente, desembargador do Rio Janeiro. Morreu em 1974, aos 68 anos de idade.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Rios, riachos e vampiros

Que o Velho Chico está pedindo socorro, todos sabemos. Que é preciso revitalizá-lo, também. Até temos idéia, uns mais, outros menos, de quais medidas devem ser tomadas para recuperar o rio da devastação insana que sofreu séculos afora, resultando na derrubada de suas matas ciliares e no assoreamento de seu leito. No início pela pecuária sem limites, depois pela agricultura sem controles, sem falar da produção de lenha para alimentar as caldeiras dos vapores, como ficaram conhecidos os barcos a vapor que dominaram o Velho Chico entre o último quarto do século XIX e quase final do século XX. O crescimento das cidades ribeirinhas sem os indispensáveis serviços de tratamento de lixo e esgoto deu mais um golpe brutal no velho rio.

Se tudo isso já é muito ruim, um fenômeno de gravidade talvez ainda maior vem tomando corpo nas últimas décadas. Trata-se da agricultura irrigada de exportação, que tomou de assalto grandes áreas da bacia do São Francisco, ameaçando o "Nilo Brasileiro" de virar pó e transformar-se num daqueles rios intermitentes do semi-árido nordestino. O problema assumiu uma dimensão espantosa na região dos cerrados, especialmente no noroeste mineiro e oeste baiano, onde nascem e escorrem importantes tributários do Velho Chico. A monocultura de exportação vem ocupando enormes espaços nessas regiões, destruindo a vegetação natural, de riquíssima biodiversidade, e definhando os rios que alimentam o São Francisco, seja pelo assoreamento ou pela utilização de forma irresponsável de suas águas na irrigação. Como vampiros, os pivôs centrais sugam sofregamente essas veias que levam o sangue do “rio da unidade nacional”.

A alegação dos agricultores de que estão produzindo desenvolvimento, gerando empregos e trazendo divisas para o país parece, à primeira vista, inatacável, soando como politicamente correta, porém tudo isso não passa de aparência. Acontece que, a longo prazo, tal desenvolvimento não se sustenta, podendo ter conseqüências nefastas e catastróficas para o ambiente natural, como já se pode perceber. Além disso, tal modelo de desenvolvimento beneficia apenas uma pequena parte da população, já que favorece a concentração de renda e gera, relativamente, poucos empregos. É verdade que existe a geração de divisas com a exportação, mas isso ocorre, em boa medida, pelas desigualdades sociais da população brasileira e a inexistência de um mercado interno suficientemente forte para absorver a produção. Não será esse modelo de desenvolvimento concentrador de renda que desencadeará o fortalecimento do mercado interno no Brasil.

Incontáveis pequenos sub-afluentes já secaram e diversos morrem à mingua sem o conhecimento da maioria da população da bacia sanfranciscana e, muito menos, de outras regiões brasileiras. A morte dos riachos, é verdade, não está unicamente ligada à agricultura de exportação, mas em todos os casos é possível verificar o desmatamento e o uso sem controle da água. Enquanto pequenos agricultores se apossam dos mananciais para irrigação de suas hortas e roças, o poder público fecha os olhos, não tomando qualquer medida, seja para impedir os abusos ou para revitalizar aqueles córregos. Prefeitos? Em muitos municípios, eles parecem não existir, pelo menos quando se trata de questões ambientais.

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