domingo, 21 de fevereiro de 2010

O Velho Chico sem chavões

Estou relendo o livro “Na carreira do rio São Francisco”, de Zanoni Neves. Com a naturalidade de um barranqueiro de Pirapora, cidade onde nasceu e passou grande parte de sua vida, ele navega pelas corredeiras da história, perpassa as croas da economia e mergulha nas profundezas da sociologia e da antropologia sanfranciscanas, sem perder de vista a limpidez do texto.

O título já é uma boa indicação do que está dentro do livro, pois remete às viagens que eram realizadas rio acima e rio abaixo, desde os tempos coloniais até a segunda metade do século XX, embora seu objetivo explícito seja analisar o trabalho e a sociabilidade dos vapozeiros, tripulantes dos barcos a vapor. Faz-nos lembrar a célebre cantiga dos remeiros, conhecida dos habitantes das margens do São Francisco, pelo menos dos mais velhos:

“Januária é carreira grande,
Corrente é meia carreira...”

Os remeiros, aqueles que empunhavam as varas na subida do rio e os remos na descida para impulsionar as antigas barcas, eram contratados por “viagem redonda” - itinerário de ida ao porto de destino e volta ao de origem. Para eles, “carreira inteira” era a viagem de Juazeiro a Pirapora, “carreira grande” a de Juazeiro a Januária, e “meia carreira” a de Juazeiro a Santa Maria da Vitória, no rio Corrente.

O livro de Zanoni faz uma viagem pela história do Velho Chico e procura definir e entender o papel de cada grupo social envolvido no que ele chama de Sistema Econômico Regional, o qual se integrava a sistemas mais amplos de alcance nacional e internacional. É aí que passamos a entender como um simples remeiro, que representava a classe mais baixa da sociedade sanfranciscana, ajudando a transportar mercadorias das mais diversas procedências, inclusive Manchester, na Inglaterra, contribuía para o desenvolvimento do Sistema Econômico Regional e, por conseqüência, dos outros sistemas que com ele interagiam.

O autor mostra também como o conhecimento e as tecnologias populares se somaram ao conhecimento dito científico ao longo da história do rio, e um dos diversos exemplos citados é o da navegação, em que práticas e saberes herdados dos índios acabaram por ser adotados nas barcas e nos vapores.

Nesse ponto, Neves demonstra como a ideologia do progresso, que impregnou os corações e mentes das elites regionais, já a partir do século XIX, orientou o crescimento econômico na bacia do São Francisco e exerceu influências no campo político. Em que pese o desprezo que os defensores da ideologia do progresso tinham pelas tecnologias tradicionais, elas continuaram a conviver com outras mais novas, tidas como símbolos de modernidade. Carros de bois e caminhões, carroças e locomotivas, canoas, paquetes, ajoujos, barcas e vapores, o velho e o novo andavam lado a lado e atuaram sinergicamente para dar vida ao Sistema Econômico Regional.

Um dos traços que marcou a ideologia do progresso foi o desprezo pelo meio ambiente, observa o autor. Como um dos exemplos, ele cita a introdução dos vapores na navegação. É verdade que eles trouxeram rapidez e aumento da capacidade de transporte de pessoas e cargas, porém, sendo embarcações que usavam a lenha como combustível, acabaram por provocar, em grande medida, a destruição das matas ciliares e, em conseqüência, o desbarrancamento e o assoreamento do rio.

O livro de Zanoni nos transporta pelo Velho Chico e nos permite acompanhar de perto a vida da tripulação, tanto na lida diária no interior do vapor, em todos os seus aspectos, quanto nas suas relações com as populações ribeirinhas. A categoria dos vapozeiros era dividida em três grupos: o “pessoal de bordo”, composto pelas tripulações, o “pessoal das oficinas” e o “pessoal dos escritórios”. Essas duas últimas compunham o grupo do “pessoal de terra”. As tripulações, que formavam o grupo do “pessoal de bordo”, eram distribuídas em diversos subgrupos, respeitando a divisão do trabalho.

Zanoni leva-nos também a uma viagem sentimental, mostrando o clima afetivo que envolvia vapores e habitantes da ribeira, ao ponto de cada uma dessas embarcações serem reconhecidas pelo som de seu apito. O próprio autor, filho de comandante de vapor, tendo viajado muitas vezes nessas embarcações, testemunhou fatos que comprovavam essa aproximação.

Nessa viagem histórica e sentimental, destacam-se as histórias de vida de quatro personagens fascinantes do velho rio: João Francisco de Souza, o prático ou piloto mais conhecido como João de Félix; Joaquim Borges das Neves, o comandante Joaquim Sereno para seus colegas; Antônio de Souza, o rigoroso comandante que mudou a vida de um ladrão; e Antônio Joaquim D´Almeida Roque, o maquinista que veio de Portugal.

Acredite, leitor: aquele que ler o livro de Zanoni Neves nunca mais verá o Rio São Francisco da mesma forma. Nestes tempos de massificações banais e repetições emburrecedoras de chavões e idéias insignificantes, a obra desse autor de Pirapora pode ser um ótimo remédio para nos curarmos do mal de desconhecimento sobre o rio mais querido e importante do Brasil.

Serviço
Título do livro: Na carreira do rio São Francisco
Autor: Zanoni Neves
Nº de páginas: 289
Editora Itatiaia (Belo Horizonte)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Navegantes

Contador de visitas