segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Divindades, bichos e assombrações da ribeira

Wilson Lins

O vale do São Francisco é fértil em lendas e propício a crendices. O seu folclore é rico e colorido. Os seus "bichos", visagens e assombrações não têm, contudo, os requintes de perversidade dos lobisomens e papa-figos de outras regiões do país. Só a "cobra de asas" da gruta da Lapa é ameaçadora; os outros mitos ribeirinhos apenas assustam. Na geografia dos pavores infantis, os bichos da mitologia são-franciscana são os menos horripilantes, os menos malignos. Os bichos da noite, no vale, preferem brincar a fazer mal. A própria cobra de asas da Lapa já não oferece tanto perigo hoje como acontecia antigamente: depois de tantos anos de ofícios de Nossa Senhora rezados para que suas penas caiam, é de se esperar que a serpente já esteja completamente pelada.

São muitas as entidades míticas da beirada. A mais popular delas, sem dúvida, é o caboclo-d'água, baixo, troncudo, bela musculatura, pele bronzeada e olho no meio da testa. O caboclo-d'água é bem-humorado, mas às vezes faz das suas, provocando prejuízos e até mortes. Bem tratado, presenteado de vez em quando com uns pedaços de fumo para mascar, o caboclo se torna benfazejo, ajuda os seus obsequiadores nas pescarias, evita que o rio entre em seus roçados etc. Maltratado ou tratado com indiferença, no entanto, torna-se perigoso. Sua morada predileta é nos rochedos do meio do rio. Também habita os bancos de areia das ilhas submersas. É anfíbio, mas não gosta de se afastar muito do rio. Só sai da água para exercer alguma vingança ou fazer algum favor. Nunca um caboclo-d'água foi visto muito longe do rio. Ele se afasta, no máximo, cem metros do seu habitat.

Contam coisas assombrosas a seu respeito. Para muita gente, ele é um só e se é visto em vários lugares ao mesmo tempo, é por ter poderes para isso. No entanto, há no vale muitas pessoas que afirmam existirem vários caboclos-d'água. Para essas pessoas, a mãe-d'água também não é uma só e sim muitas. Dos mitos aquáticos do vale, o caboclo e a mãe-d'água são os mais solicitados. Mas ainda há o minhocão (ou surubim-rei), que é o rei do rio, mandando e desmandando em tudo, na vontade dos peixes e na vontade das águas. Na opinião de muitos, o minhocão é um surubim de mais de trezentos anos de idade, que de tão velho perdeu as barbatanas, ficou roliço e, enfurecido por isso, vive fazendo mal, virando embarcações, comendo os outros peixes, derrubando barrancos para estragar as roças dos beiradeiros. Do seu corpo roliço nascem os porcos d'água, pequenos e feios monstros, cabeça e patas dianteiras de porco e o resto do corpo de peixe. Nadam muito e são usados pelo minhocão para escavar os barrancos e matar as plantações marginais. Sempre que um minhocão morre de velho e outro surubim centenário o substitui no governo do rio, há a "mudança do reino". A corte é transferida para outro perau ou sumidouro ao longo do rio.

O caboclo-d'água, a mãe-d'água e o minhocão enchem de leves pavores noturnos a gente da beira do rio, mas não afligem em nada os moradores da caatinga e dos brejos, que, por sua vez, têm outros mitos a respeitar. Na caatinga e nos brejos do interior dos municípios, reinam a caipora, a mula-sem-cabeça, o Zé-capiongo, o fogo-azul, o pé-de-garrafa, a mão-pelada e o Romãozinho, um espírito travesso que tanto atua nas caatingas e brejos como dentro do rio, em pleno domínio do minhocão e do caboclo-d'água. As aventuras de Romãozinho dariam um livro. O Romãozinho vence o caboclo-d'água, tanto em peraltice como na popularidade. Não há, na beirada, quem desconheça as diabruras do diabinho que passa os dias apagando o fogo das cozinhas e à noite atira pedras nos telhados das casas.

Povoando as noites de sezão do beiradeiro, o caboclo-d'água, o minhocão e o Romãozinho enchem de brandos pavores a alma do vale. Nasceram com a sociedade pastoril ali surgida nos primórdios do povoamento do vale. Os marinheiros de Miguel Henrique e Pedro Rebelo levaram para o São Francisco, em 1550, as crendices européias que enchiam os mares de sereias, mas lá já encontraram, amedrontando o gentio supersticioso, os deuses da terra. Os espíritos da selva, misturados com os trazidos de além-mar pelos colonizadores, deram origem a uma mitologia colorida e que, à proporção que os anos passam, vai sendo enriquecida com outras contribuições de crendices e superstições oriundas de outras regiões do interior brasileiro. Caminho natural das populações do centro, o São Francisco foi recebendo e incorporando ao seu patrimônio mítico as lendas e os bichos noturnos de várias áreas do sertão. Daí o fato de encontrarmos, integrando o folclore e a mitologia da ribeira são-franciscana, versos, canções, lendas e "bichos" dos canaviais do Recôncavo baiano, das fazendas de gado de Minas Gerais, dos garimpos de Goiás, das caatingas de Pernambuco, dos cafezais de São Paulo, dos currais do Piauí e do aguaçal amazônico. Por força de sua condição de principal via de comunicação entre o norte, o centro e o sul, o São Francisco reúne em seu folclore um pouco de toda a mitologia brasileira, apresentando-se como um catálogo vivo das lendas e crendices do país. O minhocão do São Francisco e o seu caboclo-d'água são personagens símbolos de todas as sociedades lacustres, o mesmo acontecendo à caipora de suas caatingas, que é a mesma caapora de outros sertões, embora menos malvada. O próprio Romãozinho, que é a mais beiradeira das assombrações da beirada, tem seus pontos de contato com "espíritos malignos" de outras regiões do país. Aliás, bem observado, não existem, na realidade, grandes diferenças entre os vários mitos das diversas zonas do interior brasileiro: os nomes são diferentes, mas os "bichos" são os mesmos. O cabeça-de-cuia das águas do Parnaíba é o mesmo caboclo-d'água dos barrancos do São Francisco. A boiúna amazônica é irmã gêmea do minhocão são-franciscano. A unidade mítica do Brasil é um fato. E o rio São Francisco, que no período colonial constituiu um fator decisivo da unidade territorial da pátria em formação, exerceu, igualmente, uma grande influência na unidade de suas lendas, mitos e crenças populares.

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