sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Crônica do assassinato de uma cidade

“Adeus, Remanso, Casa Nova, Sento Sé,
adeus, Pilão Arcado, vem o rio te engolir...”

Esses versos da música Sobradinho, de Sá e Guarabyra, que fez sucesso na década de 1970, devem ressoar ainda hoje como um canto fúnebre nos ouvidos dos antigos moradores das cidades engolidas pelo lago de Sobradinho. Eles viveram o horror da destruição dos lugares onde nasceram e cresceram. Eram cidades históricas de tradições seculares, que participavam do imaginário e da sentimentalidade do rio São Francisco, cada uma delas tendo sua própria identidade e significado na cabeça e na alma de toda a população ribeirinha. Foram quatro cidades “assassinadas” pela ditadura militar.

O lago formado pela construção da barragem de Sobradinho afetou mais de 13 mil famílias humildes, mas os ditadores militares que governavam o país na época não quiseram saber de conversa, afastando-as compulsoriamente de suas casas e terras, fazendo promessas que nunca se cumpriram. Os municípios de Sento Sé, Pilão Arcado, Casa Nova e Remanso foram declarados área de segurança nacional, o que, dentre outros efeitos, afastou a possibilidade de resistência e suprimiu o direito de voto para prefeito, situação que perdurou até 1985. Ao mesmo tempo, foi promovida uma intensa campanha para propagandear o que os governantes consideravam como pontos positivos do projeto. O governo da Bahia, representado por Antônio Carlos Magalhães, não deu qualquer sinal de apoio à população, colocando-se ao lado da ditadura.

No momento de compensar a população pelas perdas, cometeu-se muita injustiça, como se pode depreender do depoimento da pesquisadora Lygia Sigaud, citada no livro “Os descaminhos do São Francisco”, de Marco Antônio T. Coelho: “Os valores pagos pela Chesf (Companhia Hidro Elétrica do São Francisco) eram estipulados não em função de critérios pré-estabelecidos, mas resultaram da capacidade de resistência daqueles que estavam sendo indenizados e de suas relações harmoniosas com os funcionários da companhia, o que teria provocado variações de até 1.000% no pagamento de bens equivalentes”.

Os últimos dias de Sento Sé

O garimpeiro Jackson Coelho, testemunha do horror dantesco que assolou a região, tendo presenciado o sofrimento da população que lá vivia, dá este depoimento dramático sobre os últimos dias da centenária cidade de Sento Sé:

“No ano de 1971 recebemos com grande surpresa a notícia que a Chesf daria início à construção da barragem. Pânico Geral!

A partir deste primeiro comunicado deu-se seqüência a várias reuniões para estabelecer-se o local para onde iria a nova Sento Sé. Seria Piçarrão? Piri? Ou Tombador?
Quantas lágrimas, quantas tristezas, pior, perdas de memórias, mortes apaixonadas e repentinas. No município tudo isso aconteceu. Estavam acostumados ao torrão natal, ao carnaubal, ao rio São Francisco, às coisinhas humildes, mas que viram nascer e crescer.

A Chesf não aceitava debate. Começam as míseras indenizações, as permutas de casas e de roças. Algumas famílias a Chesf resolveu levar para as agrovilas em Bom Jesus da Lapa. E quantas ofertas boas. Era desnatural o tamanho do feijão, do milho, do tomate, até filmes. As moradias, Santo Deus, não eram casas... eram sobrados. E muita gente se foi, alguns puderam voltar e outros nem este direito tiveram.

Em 1975 começaram as mudanças, lentamente dava-se o adeus, as casas derrubadas, as roças queimadas, o plantio abandonado, as fruteiras desvalorizadas, os paus de arara transportando gente. As barracas de lona para abrigar as crianças.

Em 10 de outubro de 1976 chegou a vez de mudar a sede da municipalidade e, em seguida. as mudanças das famílias por completo, o mesmo sofrimento. A casa número 01.. a casa número 02… Que ora era pequena demais. Novembro de 1976, última mudança. Atrás deixavam-se parentes falecidos, casas caídas, a história. Aqui finda Sento Sé de ontem, abrindo espaço para uma nova vida numa nova cidade. A velha Sento Sé foi inundada pelas águas do grande lago de Sobradinho.”

2 comentários:

  1. Esta é uma dentre tantas catástrofes provocadas pelo militarismo. Daí dá para mensurar e denunciar o quanto a ditadura militar trouxe sofrimento, colocando como escudo, como justificativa a "segurança na cional". Que segurança é esta que tortura a vida, assola a humanidade? Terrivelmente, assistimos em nosso país 21 anos de pura insensibilidade, que deixaram sequelas irreparáveis. Foi-se a era negra, mas ainda alguns reflexos deste passado opressor nos perseguem de maneira camuflada e um tanto sutil. A ditadura não acabou, só adquiriu novas roupagens...

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  2. Foi triste e injusto com as pessoas de todas essas cidades.Um país que se diz democrático, mas na verdade, é opressor.As autoridades decidem e impõem.Resta ao povo o direito de aceitar calado.Um absurdo!Inaceitável!

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