terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Um brejeiro na carreira do rio Grande

A Maceió era a barca mais charmosa dentre as que entravam pelo rio Grande. Dois conveses, motor potente, rápida, colorida e alegre, sempre embalada por discos da jovem guarda tocados numa radiola. É certo que havia outras maiores, mas essas ficavam no São Francisco, entre Juazeiro e Pirapora, onde a navegação e o comércio eram mais propícios, e não se interessavam pelos afluentes. À noite, a iluminação feérica da Maceió multiplicava-se na água, funcionando como um ímã para os beiradeiros entediados.

Na boca da noite de um dia de novembro de 1968, quando eu iniciava a adolescência, entrei naquela nave fantástica rumo ao desconhecido. O porto era o de Jupaguá, que já se chamou Poço Redondo não sei por qual motivo. Feito brejeiro, como eram chamados pejorativamente aqueles que não viviam na margem do rio, eu observava cuidadosamente os atos e gestos das outras pessoas, temeroso de dar um passo em falso e cair no ridículo. Esse temor era agravado por um excessivo senso de autocrítica que me fora inculcado pela família e a timidez que sempre me acompanhou. Brejeiro, na verdade, eu era mesmo, e a prova disso é que o lugar onde nasci já se chamou Havaí do Brejo Grande. Assim mesmo, com “H”. Qual o problema? Afinal, Bahia também não se escreve com “H”? E olhe que esse nome já representava uma evolução, pois a denominação inicial era simplesmente Brejo Grande. Depois mudou para Cotegipe, em homenagem ao barão do mesmo nome, e Cotegipe continua sendo até hoje. Não se sabe por qual razão, a grafia foi oficializada com “g” e não com “j”, como deveria ser, tratando-se de palavra de origem tupi-guarani. Deve ser coisa de brejeiro.

Sempre observando os que iam à minha frente, passei com cuidado pela prancha de acesso à barca e subi a escada. D. Francisquinha, uma senhora muito simpática que se comprometeu com meus pais a me acompanhar na viagem, às vezes tentava fornecer alguma orientação, mas eu sempre procurava dar a impressão de que já sabia de tudo. Instalado no convés de cima, a mala guardada no camarote, vi os “marinheiros” desatracarem a embarcação, que começou a se mover ao som quase ensurdecedor dos motores em aceleração. A água do rio revolvia-se em redemoinhos e, pouco a pouco, o barranco da margem se afastava. Já não havia terra para pisar e fui tomado por um pouco de medo, mas tive que me conter para não demonstrar minha brejeirice. Até ocorreu-me a sensação de que estava sendo observado por outros passageiros, como se quisessem me surpreender em algum ato falho para se divertirem às custas de um pobre brejeiro. Nada posso afirmar categoricamente a esse respeito, mas que eu tive esse pressentimento, não há como negar.

Fiquei ali parado, em pé, a olhar para o rio e a vegetação da margem, tudo muito bonito de se ver, até que a escuridão da noite escondeu a paisagem e me obrigou a dedicar minha atenção ao interior da barca. Na parte da frente havia, além do compartimento do piloto, alguns pequenos quartos com beliches, que eram chamados de camarotes. No meio do convés, via-se uma espécie de sala relativamente ampla, com mesa e cadeiras, onde os passageiros se encontravam para conversar e fazer as refeições. A parte traseira era também ocupada por camarotes e os lados eram corredores de livre trânsito. Em torno do convés, existia uma grade baixa, onde os passageiros se acotovelavam quando queriam observar a paisagem.

Veio o jantar. Que delícia! Não me lembro muito bem de toda a comida, mas nunca esquecerei os ovos mexidos, que para mim eram novidade, pois só conhecia ovos estrelados inteiros. Parecia que a cada momento minha brejeirice era confirmada, mas eu me mantinha firme, não dava o braço a torcer. Nunca mais encontrei ovos mexidos tão saborosos quanto aqueles da Maceió. Os passageiros falavam de assuntos diversos e eu só ouvia. Quando a barca se aproximou do Soares, um ponto muito sinuoso do rio, a conversa foi silenciada e eu pude perceber uma certa tensão no ambiente. Nada entendi até que alguém resolveu abrir a boca:

- Foi aqui o naufrágio.

Aí então fiquei sabendo que ali mesmo, na curva do Soares, um vapor havia naufragado anos atrás e que várias pessoas morreram. Tive medo. Hoje parece até mentira, mas, por incrível que pareça, o rio Grande já foi singrado por vapores, embarcações maiores do que as barcas.

Eu devia estar muito cansado, pois quando me deitei, nem a lembrança do naufrágio foi capaz de prejudicar meu sono. Ao acordar, na manhã seguinte, estávamos chegando à cidade da Barra, meu destino de viagem, lugar em que eu me submeteria aos exames de admissão no curso ginasial. Para lá acorriam jovens do médio São Francisco em busca de educação, sendo a cidade onde existiam os melhores colégios. Ao observar aquele lugar pela primeira vez fiquei fascinado e, ao mesmo tempo, intimidado. O imenso cais de pedra, com sua bela balaustrada, e os casarões altos com fachadas ornamentadas em alto relevo davam um ar de civilização a que um brejeiro como eu não estava acostumado.

A barca atracou em um ponto quase fora dos limites da cidade, pouco acima do lugar onde o cais começava. Provavelmente para livrar-se da fiscalização. D. Francisquinha contratou os serviços de um carregador de malas e lá fomos nós descendo a cidade até a casa onde eu me instalaria, um pensionato de um tio. Parecia que a cada passo minha timidez aumentava, mas eu procurava me controlar, tentando demonstrar uma naturalidade inexistente. De longe avistei, numa praça movimentada, uma enorme e bela construção avermelhada, que depois soube se tratar do mercado municipal. Quando nos aproximamos, estremeci, ao ouvir uma voz gaiata vinda do cais:

- Ei, brejeiro!

Fitei o chão envergonhado e ouvi novamente:

- Ei, brejeiro!

Um suor frio começava a escorrer da minha testa e naquele instante ouvi um grito mais forte no meio da praça, bem próximo de nós:

- Sou brejeiro, mas tenho dinheiro!

Alívio! Levantei a cabeça e pude ver um rapaz baixote, amorenado, cabelos lisos e peito estufado puxando um jumento que transportava duas bruacas. Foi aí que D. Francisquinha comentou, sem conseguir disfaçar o riso no canto da boca:

- Esses malandros da Barra não deixam os coitados em paz.

Fiquei sabendo que se tratava de gente dos brejos vizinhos que iam ao mercado da cidade para vender seus produtos e fazer as compras de que necessitavam. Eu, que era brejeiro, mas não tinha dinheiro senti despertar meu lado trocista e peguei a rir discretamente, quase fazendo coro aos gaiatos do cais. Mantive-me calado e segui minha viagem mais tranqüilo até o pensionato.

A cidade da Barra tinha começado a me conquistar.

Um comentário:

  1. Fascinante o texto! Fiquei encantada com a riqueza de detalhes e originalidade. Um brejeiro na carreira do Rio Grande... Nesta narrativa fica a sensibilidade de um menino pacato, amante do silêncio, atento a tudo e a todos, mas também de um menino profundo no olhar e nos pensamentos - me parece que é Tio Beto,(risos!). Quantas recordações! Sei que tem muita história para contar...

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