sábado, 16 de janeiro de 2010

Romãozinho segundo Wilson Lins

A história de Romãozinho é curta e simples. Contam que ele era um menino muito atentado, espírito inquieto, amigo dos brinquedos perigosos. Era filho de um casal de camponeses. Seu pai trabalhava longe do rancho, e ele ficara encarregado de levar-lhe a comida todos os dias, no roçado. A mãe sofria muito com as peraltices do filho e a brutalidade do marido, que a espancava por qualquer “dá cá aquela palha”. Romãozinho gostava de ver a mãe apanhar, razão por que estava sempre provocando briga entre os pais.

Todos os dias, quando ia levar a comida para o pai na roça, o endiabrado garoto comia metade pelo caminho, de modo que o pai tinha sempre motivo de espancar a mulher quando chegava em casa à noite, alegando que ela era mesquinha e queria matá-lo de fome. A mulher retrucava que mandara o suficiente, e isto aumentava a raiva do marido. Certo dia, a pobre mãe matou uma galinha e preparou-a a capricho, mandando-a inteirinha, para o marido. Romãozinho comeu tudo no caminho e, chegando no local do trabalho, onde o pai, faminto, o esperava, apresentando-lhe apenas os ossos da galinha, disse:

– Ela manda dizer que se contente com os ossos, pois a carne guardou para seu vigário.

Mal acabou de ouvir o que o filho lhe dizia, o homem saiu como louco e, chegando em casa, matou a mulher. No momento exato em que o marido matava a esposa, o mau filho estourou, deixando atrás de si um horrível cheiro de enxofre. Desse dia em diante, Romãozinho começou a aparecer às pessoas, fazendo boiadas arrebentarem os currais, virando panelas no fogo, furando potes de água e jogando pedras nos telhados das casas.

Ele virou “bicho” aos doze anos de idade. São passados mais de duzentos anos e ele continua do mesmo tamanho, com a mesma fala. Romãozinho é um terror. Quando toma birra por uma pessoa, ela tem de mudar de terra. Conhecemos um casal de roceiros que abandonou tudo que tinha em Malhada, no alto São Francisco, por causa dele. O marido disse que via a hora de sua mulher morrer de tanto apanhar do malvado. O pobre vivia escondendo os chicotes, cabos de vassouras, cordas, etc., pois quando Romãozinho chegava, sem que ninguém o acionasse, o chicote se desprendia do prego onde estava pendurado e, sozinho, começava a bater na mulher. Quando não era assim, disse-nos o roceiro, era a sua viola que saía do grampo e começava a tocar, flutuando no ar. Se eles ficavam com medo, o invisível violeiro soltava gargalhadas zombeteiras, que estrondavam pela casa toda. A perseguição durou tanto que eles tiveram de mudar de terra.

Um outro depoimento que ouvimos sobre Romãozinho apresenta o diabrete pondo em polvorosa todo um povoado: durante mais de uma semana Romãozinho atormentou o arraial de Icatu, apagando o fogo das cozinhas, suspendendo os vestidos das moças no meio da rua, derrubando todas as mercadorias das prateleiras dos armazéns, tocando o sino da igreja, enfim pondo em desassossego toda a população. Foi preciso chamar um padre na Barra para benzer o vilarejo. Mesmo depois da intervenção do padre, Romãozinho continuou, vez por outra, a visitar o lugar, cometendo desatinos.

No seu afã de distribuir malefícios, Romãozinho sincretiza com o próprio saci, chegando em muitos casos a usar cachimbo e mascar fumo de corda. Há aparições de Romãozinho que são verdadeiros plágios da caipora, como as vezes em que ele aparece nos acampamentos, colocando borralho quente nas virilhas dos tropeiros adormecidos. Meninote acaboclado, Romãozinho lembra, na estatura, na cor e nas diabruras, o caboclo-d'água e a caipora, com a diferença de não morar dentro dos rios, como o primeiro, nem saber cavalgar caitetus, como o último. Como no tempo em que era gente, Romãozinho ainda hoje não dispensa uma baladeira, e com ela distribui pedradas certeiras pelos telhados das vilas e fazendas. Uma de suas brincadeiras prediletas é trepar, sem ser convidado, na garupa dos viajantes, viajando léguas e léguas sem ser notado. O viajante só sabe que andou com Romãozinho na garupa quando pára, pois o diabrote, antes de saltar para o chão, dá uma palmadinha de agradecimento no ombro do cavaleiro, que, voltando-se e não vendo ninguém, adivinha logo que se trata dele. Em ocasião como esta, o viajante deve rezar imediatamente o Creio em Deus Padre (o Credo), para evitar que o espírito maligno não queira ficar freguês de sua garupa, pois, segundo é voz corrente no vale, dá azar andar em companhia de espíritos sujos.

Às margens do São Francisco há lugares certos onde o viajante pode encontrar canoeiros profissionais que ganham a vida transportando gente e animais de um lado para outro do grande rio. São os passadores. O passador mora perto do rio e sua canoa está sempre amarrada ao pé da casa. Ao chegar, o viajante, vendo a embarcação ancorada na margem oposta, grita uma vez ou duas, conforme a necessidade:

— Oôô passador!

E o passador vem “passar” o viajante. Mas em tempo de “aparição” de Romãozinho, o “passador” toma trote toda hora: o espírito maligno, para aperrear o homem, grita da outra margem, à maneira dos viajantes; o passador corre a atender, mas chegando no lugar de onde partiu o apelo não encontra ninguém. Para maior desgosto do canoeiro-passador, Romãozinho solta uma gargalhada gostosa, do meio do mato.

Folião inveterado, Romãozinho não perde festa. Onde ronca uma sanfona o diabinho se apresenta, levantando poeira, participando da alegria dos homens. A sua presença, nas festas, é pressentida pelas diabruras que lhe são características. Quando o candeeiro apaga três vezes, já se sabe: Romãozinho está no baile. Outro sinal da presença do “maligno” numa festa é a cachaça desaparecer rapidamente dos garrafões. Com ele num forró, os garrafões de aguardente secam num abrir de olhos. Beberrão de raça, Romãozinho deixa os festeiros sem pinga para animar a festa. Ele bebe por todos. E, depois de bêbado, se escorna a um canto, roncando alto, enquanto a festa continua ao som da sanfona e o arrasta-pé prossegue na sala de chão batido. Bêbado, Romãozinho é inofensivo: dá para dormir, que é um nunca acabar. Sabemos de um caso em que ele, depois de secar três garrafões de catuzeira [1], dormiu três dias e três noites, e quando por fim acordou, com voz pastosa disse, fugindo:

– Vomembora senão me acabo, pois nunca vi cachaça mais ruim.

Contam que de outra feita, ao acordar da ressaca, ameaçou:

– Se da próxima festa que eu vier aqui, não encontrar uma garrafa de januária só para mim, deixo todo mundo nu no meio do salão.

Romãozinho é popular em todo o vale, e dele contam histórias que dariam para encher um volume. É um personagem querido, ao mesmo tempo que temido, cujas aventuras são o regalo da imaginação popular e servem de assunto de conversa em todas as rodas. Inimigo natural do Bom Jesus da Lapa, certa vez ele foi em romaria ao santuário milagroso só para perturbar os romeiros. Durante os dias que passou na Lapa, roubou as esmolas dos cegos, provocou brigas no adro da igreja, de maneira que nesse ano não houve recolhimento de espírito para os que tinham ido em busca de paz.

Autêntico espalha-brasa, compromete com as suas arrelias os céus e a terra. Sozinho vale por uma legião de demônios. O inferno é pequeno para as suas diabruras e, por isso, ele faz do São Francisco o seu paraíso.

Nota

1. Cachaça ordinária, o nome vem de Icatu, lugar onde era fabricada a pior cachaça da região.

(Wilson Lins)

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