domingo, 11 de abril de 2010

O riacho de Cotegipe

De manhã, ele era das lavadeiras. Umas lavavam roupa, outras a tralha de copa e cozinha – panelas, copos, pratos, tachos, talheres, gamelas e colheres-de-pau. Ficava tudo limpinho, areado com perícia e disposição. Ajudava muito a sombra das mangueiras seculares, de copas enormes e fechadas, por onde era raro passar algum raio de sol. Não havia cerca em volta delas e ninguém reivindicava sua propriedade, embora todos soubessem que possuíam donos. Na prática, pertenciam à comunidade, que delas usava e abusava. Na sombra daquelas mangueiras, faziam-se piqueniques, descansava-se, namorava-se, brincava-se e até brigava-se. Elas tinhas raízes enormes, que serviam de cama e cadeira. Como nem tudo é perfeito, havia sempre o risco de uma manga despencar na cabeça de alguém.

Quando terminava a faina das lavadeiras, os meninos e rapazes começavam a tomar conta do riacho de Cotegipe, dando “saltos mortais” nos peraus, para desespero das mães, ou pescando em algum ponto mais tranquilo. Pelo menos os pescadores mais hábeis nunca voltavam para casa sem uma fieira de pequenos bagres, alguns currubangos, mandins, piaus e, quando a sorte era maior, uma traíra como troféu. Peixes pequenos, porque os maiores não se interessavam por aquele modesto fio d’água dos brejeiros, preferiam a água larga e profunda do rio Grande, afluente imenso do São Francisco. Os próprios meninos tratavam seu pescado para a farofa a ser compartilhada com os amigos. Uma festa!

No período da seca, o riacho diminuía mas não secava, a não ser quando algum agricultor atrevido barrava a água com açude para irrigar sua roça ou horta. Nesses momentos, o prefeito, pressionado por queixas de todos os lados, era forçado a tomar alguma providência, mesmo sabendo que o fora-da-lei lhe dava apoio político. Também pesava em sua consciência saber que muitas e muitas famílias dependiam daquele córrego para sobreviver. Sem infraestrutura, a cidade toda se servia do riacho para matar a sede, e os potes de barro eram abastecidos antes do nascer do sol, quando a água era mais limpa.

- O que é que eu faço, Otacílio? – bradava o chefe do executivo municipal, no auge do desespero, a um de seus amigos, homem despachado, conhecido na cidade pela coragem incomum.
- Esbandaia, seu prefeito, esbandaia! – respondia invariavelmente o destemido Otacílio, que acabou pegando o nome de Otacílio Esbandaia.

Quase sempre, o problema era resolvido na base da conversa, sem necessidade de “esbandaiar” o açude com violência.

De uns anos pra cá, o riacho de Cotegipe veio diminuindo, diminuindo... até sumir. No tempo das chuvas, a água reaparece e corre, às vezes, com certa abundância, dando a impressão de que tudo se normalizou. Mera ilusão, pois quando chega a seca seu leito se transforma em estrada de barro e areia, como naqueles rios do semiárido nordestino.

Até as enchentes ficaram diferentes. Por mais que chova, elas são pequenas, tímidas, incapazes de assustar a população, exceto os desprotegidos moradores da rua do Tamarindo, que parecem estar à mercê de todo tipo de sofrimento. Lá não conta, pois até mesmo uma cabeça-d’água mais volumosa pode causar inundação. Enchente de verdade já não existe. É comum ouvir dos moradores mais velhos relatos de cheias colossais, inesquecíveis, que chegavam a tomar partes da cidade e a levar consigo casas, cercas e animais. “A de 39 foi a maior”, afirma um, “grande foi a de 53”, diz outro, “igual à de 65 nunca houve”, garante mais outro. Longe de mim defender esse tipo de enchente, e o leitor já deve ter percebido que meu objetivo aqui é o de apenas fazer uma comparação.

O certo é que o riacho está mudado, para não dizer morto, embora ainda permaneça vivo dentre de mim e de muitas outras pessoas. Se pudesse, eu o pegaria com as mãos e o recolocaria inteiro em seu leito para correr garboso como nos velhos tempos. De preferência, sem enchentes violentas e destruidoras.

Espero ainda por um milagre.

11 comentários:

  1. É lamentável a situação atual do Riacho de Cotegipe. Aquele ambiente que era um espaço de lazer para toda a população, como também, para as donas de casa realizarem alguns afazeres domésticos, hoje em meio ao lixo, só existe os rastros das lembranças. Nenhuma cota de água por lá, apenas o resultado deplorável da degradação ambiental. As represas de água no alto das Duas Barras, emperram que as águas das nascentes sigam o seu caminho natural. As matas ciliares deixam de existir e a seca é inevitável.
    Como era bom fazer pequinique embaixo das mangueiras! Saudades dos tempos de outrora que eu, Gabi e outras amigas íamos para lá. Mas uma evidência de que o próprio homem se destrói e finge não se dar conta. O poder econômico é o que importa e tem que ser garantido a todo custo.
    Realmente, a realidade vigente não é nada agradável, meu tio. Assim como o senhor, espero que um milagre ainda aconteça. Um forte Abraço! Já estava sentindo falta do Vapor Encantado!!!

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    1. Cebereba,
      Sinto saudade dos tempos de infância, vividos em grande parte pescando neste riacho que margeia o mangueiral e fundos de quintais, no qual pegávamos com anzol esses peixes citados no texto acima.Belos tempos!!

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  2. Nehuma gota de água por lá, só quando São Pedro, manda chuva...

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  3. Oi, Romênia
    Devagar, o Vapor está voltando a navegar. Quanto ao riacho de Cotegipe, acho que ainda pode haver salvação. Depende de dinheiro e disposição dos governantes para enfrentar a batalha. É claro que se a população não pressionar, nada será feito, porque político só funciona no empurrão. O começo de tudo está na consciência do povo.
    Bjo.

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  4. O mesmo aconteceu no riacho do Poção, em Riachão das Neves. Meus irmãos, que moram em São Paulo, desfrutaram muito do riaco quando eram pequenos. Hoje, eles ficam extremamente decepcionados quando vêm para a região e se deparam com o chão seco onde antes a água lhes proporcionava tanta alegria. Vamos procurar educar as pessoas e adotar medidas que ajudem a preservar a mãe natureza!

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  5. Oi, Leonardo

    Também acho que tudo depende da consciência da população, mas não devemos esquecer que as autoridades não podem ficar omissas, tanto na fiscalização quanto na adoção de estratégias que procurem revitalizar esses cursos d'água. Portanto, o povo precisa pressionar vereadores, prefeitos, deputados e o que mais for possível. Acho que ainda há salvação.

    Um abraço

    Cebereba

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  6. É verdade, a consciência do povo é o caminho. Só a mobilização popular pode mudar a realidade. O grande problema é que as pessoas reclamam o tempo todo e não entram em ação. É preciso que um grupo abrace a causa e leve em frente o projeto de Revitalização do Riacho, que deve ser para já.
    Há um tempo atrás, o grupo de jovem fez algumas visitações nas escolas, debatendo o assunto, eu mesma participei, bem como, alguns passeios ecológicos, mas houve uma dispersão do grupo e o projeto foi paralisado. Acredito que agora, o grupo já está bem estruturado de novo e tem condições de retomá-lo, inclusive o ex funcionário do IBAMA, o Dino Dal Bó - já colocou-se à disposição do pessoal.
    Vejo que dá para acionar o grupo de jovem, as escolas e outras entidades do município, no intuito de recomeçar essa empreitada e com certeza somos um dos agentes encarregados desse processo, hein tio!? Como o senhor conhece bem as histórias e a realidade do nosso Riacho, pode nos ajudar muito na elaboração de um informativo para que possamos realmente, deslanchar a campanha em prol da Revitalização do Riacho de Cotegipe. Quem sabe num futuro bem próximo poderemos ter o privilégio de contar de novo com o nosso Riacho Vivo, bem vivo!! O convido para o desafio!!

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  7. Primeiro, despertar a população, depois pressionar as autoridades com manifestações públicas, usando a criatividade. A recuperação do riacho deve ser realizada de forma profissional, com o assessoramento de quem entende do assunto. Isso fica com os técnicos.

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  8. Chegar em Cotegipe é fácil, difícl são as recordações da infância naquela Terra natal!!!Principalmente as águas que corriam embaixo das mangueiras...Quem ainda lembra ou brincou no fundo do quintal da tia Belinha e tio Nelson Batista e a inesquecível"Maria Dú"???Quantas vezes as buscas de águas limpas para o consumo lá no Barreirinho ás madrugadas com latas d'água na cabeça. Era difícil, mas era divertido...Como diz a Romenia: é preciso q/ todos abracem a causa para que o nosso riacho reviva novamente. 21 de abril de 2010.

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  9. Pois é, Antônia,
    Quanta saudade do velho riacho! Se o povo de Cotegipe quiser, ele ainda pode ser recuperado.

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  10. Ao lê seu texto, fui vivenciando a minha infância, bastante aproveitada na minha Cotegipe, e mtas dessas alegrias compartilhei no Riacho de Cotegipe, lá foi fruto de muitas aprontações, brincadeiras, lembro q cada mangueira daquela representava um casinha, tomar banho no riacho, mesmo que muitas vezes escondida era super prazeroso, sentírmos o volume das águas...hoje e acho q foi mto rápida, deparamos com a degradação total desse riacho que deixou de beneficiar a comunidade e propocionar tantos momentos alegres.

    O mais triste, que o nosso riacho morreu, e esse fato não está restrito apenas a nossa cidade, inúmeros casos estão acontecendo em toda a região.

    Como já dito acima por outros comentários, devemos sair do estado de inércia e agir para tentarmos resgatar a vitalidade daquele riacho e revivermos tudo que ja foi proprocionado aquela beleza natural.

    Bárbara Mariani

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