Acabo de receber um presente de alto nível, vindo de Belo Horizonte. Trata-se do livro "O Rio São Francisco - História, Navegação e Cultura", do professor e pesquisador piraporense Zanoni Neves, que teve a gentileza de me ofertá-lo. Há muito, ele se dedica a descobrir e explicar a história e a cultura do Velho Chico em múltiplos aspectos, e posso atestar, pelo que conheço de sua obra, que ele leva a sério a verdade científica, sem abandonar, como barranqueiro que é, o lado afetuoso em relação a tudo que o envolve.
O livro em questão é uma coletânea de artigos que o autor publicou em diversas revistas especializadas ou em jornais e revistas de ampla circulação, podendo se constituir em um ponto de partida para aqueles que queiram conhecer sua obra em maior profundidade. Embora sérios, seus escritos são perfeitamente assimiláveis por leitores sem familiaridade com os textos acadêmicos. Na verdade, é uma escrita agradável e apaixonante.
A edição da obra é da editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, onde pode ser adquirido. O endereço é rua Benjamin Constant,790, Cep 36015-400, Juiz de Fora-MG. Fone/fax: (32)3229-7645 e (32)3229-7646. O livro também pode ser encontrado em livrarias universitárias.
quarta-feira, 12 de maio de 2010
quarta-feira, 5 de maio de 2010
A Casa do Careta
Carinhanha nos apresenta uma intrigante obra arquitetônica: a Casa do Careta. Um levantamento de bens culturais realizado pela Assembléia Legislativa de Minas Gerais tenta desvendar a história dessa preciosa e misteriosa construção:
"A edificação foi construída no século XVIII.
Segundo José Castor, teria se originado de uma rixa entre dois portugueses que residiam no local. Cada um construiu uma casa, tentando jocosamente mostrar a face do outro. Quando concluídas as obras, as duas caretas tinham o mesmo aspecto e se assemelhavam bastante aos dois contendores.
À parte a história local, a única das duas casas que restou encontra-se em bom estado de conservação. A fachada é majestosa, ornada com platibanda, e um rosto do português encima a parede frontal."
A Casa do Careta, que exerceu diversas funções ao longo do tempo, foi restaurada recentemente e hoje abriga a secretaria de Cultura de Carinhanha. Acho que aqui está um belo exemplo de revitalização de um bem cultural.
segunda-feira, 26 de abril de 2010
Crime no Pajeú
Pobre rio Pajeú! O matadouro municipal de Serra Talhada, terra de Lampião e do deputado Inocêncio Oliveira, que já foi presidente da Câmara dos Deputados mais de uma vez, está despejando naquele célebre afluente do São Francisco restos de oitocentos animais abatidos por semana. Nem é preciso falar o que isso significa para a cidade e o rio. Os leitores que usem sua imaginação. Será que fede?
Para quem ainda não se lembrou, o rio Pajeú é aquele mesmo da música de Luiz Gonzaga, que recebe as águas do riacho do Navio e "vai despejar no São Francisco".
Para quem ainda não se lembrou, o rio Pajeú é aquele mesmo da música de Luiz Gonzaga, que recebe as águas do riacho do Navio e "vai despejar no São Francisco".
terça-feira, 20 de abril de 2010
Carranca é arte, sim! O que acham, conterrâneos?
"Por preconceito ou má vontade, as carrancas brasileiras permaneceram muito tempo desprezadas no mundo da arte. Feitas por artistas populares, diletantes ou autodidatas, sofreram com os rótulos simplistas e a falta de visão dos próprios conterrâneos. Depois de uma longa luta por seu reconhecimento, levada a cabo graças a insistência de artistas nacionais, como Roberto Burle Marx, e estrangeiros, como o fotógrafo francês Marcel Gautherot, as esculturas ganharam espaço privilegiado no acervo dos mais importantes colecionadores do mundo. Escolhidas entre coleções do comendador português Joe Berardo e o galerista Jean Boghici pelo produtor cultural Romaric Büel, algumas das obras mais representativas do gênero, assinadas por carranqueiros como Agnaldo Manoel dos Santos, Afrânio Barca e Francisco Biquina dy Lafuente (popularmente conhecido como Guarany), voltam agora ao alcance do público na exposição O triunfo das carrancas, que abre nesta terça-feira no Centro Cultural dos Correios."
O texto acima é o primeiro parágrafo de uma matéria publicada hoje pelo Jornal do Brasil. As carrancas, que inicialmente tinham menos uma função decorativa do que utilitária - espantar os maus espíritos para proteção contra naufrágios - nas barcas do São Francisco, estão ganhando o status de obras de arte, como se vê. Nada mal, mas seria preferível que elas estivessem reunidas em algum museu na beira do Velho Chico, para que os barranqueiros e outros brasileiros pudessem apreciá-las à vontade.
Não podemos, porém, deixar de reconhecer que a valorização das carrancas deve-se principalmente ao esforço de pessoas de fora. Daí a necessidade de um esforço no sentido de fortacer a cultura da bacia do São Francisco, de uma forma que sua população possa se orgulhar do seu patrimônio.
Obs.: A foto acima mostra Guarany na sua oficina, em Santa Maria da Vitória.
segunda-feira, 19 de abril de 2010
A chegada do aventureiro
Vindo de São Paulo, onde passou muitos anos trabalhando em cidades do interior, Ulisses desembarcou em Sítio do Mato e partiu para São Gonçalo, hoje Serra Dourada. De bolsos já completamente vazios, teve que sair à procura de alguém conhecido para pedir ajuda.
Deu sorte. Encontrou um conterrâneo que emprestou o dinheiro, quantia pequena mas suficiente para aguardar a chegada da missão de socorro que deveria vir de Cotegipe, onde moravam seus pais, Januária e Horácio. Jovelina, a dona da pensão Santa Cruz, mulher simpática e educada recebeu o viajante solitário de braços abertos, diante das recomendações de Tenório, o que emprestara o dinheiro.
- Fique tranqüila que o rapaz é de boa família.
O mesmo Tenório encarregou-se de levar a notícia da chegada de Ulisses, já que estava de partida para Cotegipe na madrugada do dia seguinte. A boa nova iria a cavalo, o transporte mais rápido naqueles tempos ininternéticos. Ora, Internet, de onde apareceu essa idéia? Será que estou delirando?
Tenório foi para a cama cedo, pouco depois do jantar, e Ulisses saiu a passear na noite de São Gonçalo. A escuridão era quebrada aqui e acolá por luzes que saíam das casas de calçadas altas, ainda poucas naquele tempo. Um barulho de conversa chamou sua atenção. Só podia ser uma bodega, pensou rápido, e não teve jeito: foi atraído pelo canto das sereias.
Dias depois, chegou a missão de resgate. Ao se inteirar da boa notícia, Januária não perdera tempo e passara a tomar as procidências para receber da melhor forma possível o filho pródigo. Era, talvez, o filho mais querido. Tinha o pavio curto, mas era cativante no relacionamento com os amigos, que se divertiam com seus chistes e histórias.
Numa tarde Ulisses viu chegar na pensão Santa Cruz um grupo de cavaleiros, logo identificados como provenientes de Cotegipe, tocando mulas com bruacas. Reconheceu alguns deles, como Chico Preto e Cambraia, mesmo tendo passado tanto tempo sem vê-los.
O comandante da tropa, Chico Preto, mal o esperou se aproximar e gritou:
- Ulisses, seu cabra safado, olha a comitiva que veio buscar você! Coisa boa é que não falta por aqui, dê só uma espiada nas bruacas. A véia caprichou.
Depois dos abraços e pilhérias, ele conferiu a carga das mulas: lingüiça pronta para assar, fritos de galinha e de porco, carne seca, paçoca feita no pilão, requeijão, queijo, rapadura, farinha, cambraia, manuê, doce de leite e de maracujá, bolo de mandioca e biscoitos diversos – peta, rachadinho, ginete, voador, amor-perfeito, queijadinha e outros mais. Quando viu o chouriço, doce preparado com sangue de porco, o rapaz não se conteve.
- Minha mãe querida... não se esqueceu de nada! – balbuciou emocionado com lágrimas nos olhos.
Na madrugada do dia seguinte, a tropa, já devidamente abastecida de conhaque e cachaça, tomou o caminho de volta, levando para Cotegipe o filho pródigo. Uma casa aqui, outra acolá, estrada sem movimento, muito mato, riacho e serra para atravessar. Era coisa pra uns três dias de viagem e muitas histórias. Cambraia recordava as estripulias de Ulisses em Cotegipe e esse respondia com as de São Paulo. Chico Preto ria junto com os outros membros da comitiva. Quando a noite se aproximava, procuravam alguma clareira na mata e improvisavam barracas galhos e varas, onde estendiam esteiras de tabua para se deitar. Depois, vinha a melhor parte. Com pedaços de pau recolhidos no mato, eles faziam uma fogueira, que servia para afastar o frio e assar espetos de carne e lingüiça. Ah, que cheiro bom! A cachaça e o conhaque eram acompanhamentos perfeitos para aquelas preciosidades culinárias do sertão, e nisso eles não economizavam. Ulisses se empanturrava com aquela lingüiça que só sua mãe sabia fazer. As onças andavam por perto, pois seus esturros chegavam bem altos ali na beira do fogo, e isso era pretexto para muitas histórias.
Numa tarde, do alto da serra, avistaram um aglomerado de casas que pareciam pequenos pontos no meio de um imenso vale ocupado por roças e matas. Era Cotegipe.
- Uma rodada de pinga com carne seca pra comemorar! – gritou Chico Preto ante o alarido da comitiva.
Beberam e comeram à vontade até chegarem ao destino por volta das cinco e meia da tarde. Quando apontou na entrada da única praça da cidade, a comitiva foi surpreendida pelos foguetes que estouravam na frente da casa de Januária e Horácio, onde um grande número de pessoas estava aglomerado.
- Viva Ulisses! – gritava a multidão.
- Meu filho! Preparei a galinha-ao-molho-pardo que você gosta! – exclamou Januária chorando ao abraçar Ulisses, que nada e tudo disse. Lágrimas nos olhos.
...............................................................................
Quarenta anos depois, Ulisses contava essa história a um grupo de rapazes e, ao terminar, um de seus sobrinhos entrou na conversa:
- Tio, fale sobre a emoção que você sentiu com aquela recepção tão acalorada, depois de ter passado tantos anos fora de sua terra.
O velho Ulisses coçou a cabeça, pensou por um instante e respondeu:
- Eu não me lembro de nada, meu filho, pois estava bêbado.
Deu sorte. Encontrou um conterrâneo que emprestou o dinheiro, quantia pequena mas suficiente para aguardar a chegada da missão de socorro que deveria vir de Cotegipe, onde moravam seus pais, Januária e Horácio. Jovelina, a dona da pensão Santa Cruz, mulher simpática e educada recebeu o viajante solitário de braços abertos, diante das recomendações de Tenório, o que emprestara o dinheiro.
- Fique tranqüila que o rapaz é de boa família.
O mesmo Tenório encarregou-se de levar a notícia da chegada de Ulisses, já que estava de partida para Cotegipe na madrugada do dia seguinte. A boa nova iria a cavalo, o transporte mais rápido naqueles tempos ininternéticos. Ora, Internet, de onde apareceu essa idéia? Será que estou delirando?
Tenório foi para a cama cedo, pouco depois do jantar, e Ulisses saiu a passear na noite de São Gonçalo. A escuridão era quebrada aqui e acolá por luzes que saíam das casas de calçadas altas, ainda poucas naquele tempo. Um barulho de conversa chamou sua atenção. Só podia ser uma bodega, pensou rápido, e não teve jeito: foi atraído pelo canto das sereias.
Dias depois, chegou a missão de resgate. Ao se inteirar da boa notícia, Januária não perdera tempo e passara a tomar as procidências para receber da melhor forma possível o filho pródigo. Era, talvez, o filho mais querido. Tinha o pavio curto, mas era cativante no relacionamento com os amigos, que se divertiam com seus chistes e histórias.
Numa tarde Ulisses viu chegar na pensão Santa Cruz um grupo de cavaleiros, logo identificados como provenientes de Cotegipe, tocando mulas com bruacas. Reconheceu alguns deles, como Chico Preto e Cambraia, mesmo tendo passado tanto tempo sem vê-los.
O comandante da tropa, Chico Preto, mal o esperou se aproximar e gritou:
- Ulisses, seu cabra safado, olha a comitiva que veio buscar você! Coisa boa é que não falta por aqui, dê só uma espiada nas bruacas. A véia caprichou.
Depois dos abraços e pilhérias, ele conferiu a carga das mulas: lingüiça pronta para assar, fritos de galinha e de porco, carne seca, paçoca feita no pilão, requeijão, queijo, rapadura, farinha, cambraia, manuê, doce de leite e de maracujá, bolo de mandioca e biscoitos diversos – peta, rachadinho, ginete, voador, amor-perfeito, queijadinha e outros mais. Quando viu o chouriço, doce preparado com sangue de porco, o rapaz não se conteve.
- Minha mãe querida... não se esqueceu de nada! – balbuciou emocionado com lágrimas nos olhos.
Na madrugada do dia seguinte, a tropa, já devidamente abastecida de conhaque e cachaça, tomou o caminho de volta, levando para Cotegipe o filho pródigo. Uma casa aqui, outra acolá, estrada sem movimento, muito mato, riacho e serra para atravessar. Era coisa pra uns três dias de viagem e muitas histórias. Cambraia recordava as estripulias de Ulisses em Cotegipe e esse respondia com as de São Paulo. Chico Preto ria junto com os outros membros da comitiva. Quando a noite se aproximava, procuravam alguma clareira na mata e improvisavam barracas galhos e varas, onde estendiam esteiras de tabua para se deitar. Depois, vinha a melhor parte. Com pedaços de pau recolhidos no mato, eles faziam uma fogueira, que servia para afastar o frio e assar espetos de carne e lingüiça. Ah, que cheiro bom! A cachaça e o conhaque eram acompanhamentos perfeitos para aquelas preciosidades culinárias do sertão, e nisso eles não economizavam. Ulisses se empanturrava com aquela lingüiça que só sua mãe sabia fazer. As onças andavam por perto, pois seus esturros chegavam bem altos ali na beira do fogo, e isso era pretexto para muitas histórias.
Numa tarde, do alto da serra, avistaram um aglomerado de casas que pareciam pequenos pontos no meio de um imenso vale ocupado por roças e matas. Era Cotegipe.
- Uma rodada de pinga com carne seca pra comemorar! – gritou Chico Preto ante o alarido da comitiva.
Beberam e comeram à vontade até chegarem ao destino por volta das cinco e meia da tarde. Quando apontou na entrada da única praça da cidade, a comitiva foi surpreendida pelos foguetes que estouravam na frente da casa de Januária e Horácio, onde um grande número de pessoas estava aglomerado.
- Viva Ulisses! – gritava a multidão.
- Meu filho! Preparei a galinha-ao-molho-pardo que você gosta! – exclamou Januária chorando ao abraçar Ulisses, que nada e tudo disse. Lágrimas nos olhos.
...............................................................................
Quarenta anos depois, Ulisses contava essa história a um grupo de rapazes e, ao terminar, um de seus sobrinhos entrou na conversa:
- Tio, fale sobre a emoção que você sentiu com aquela recepção tão acalorada, depois de ter passado tantos anos fora de sua terra.
O velho Ulisses coçou a cabeça, pensou por um instante e respondeu:
- Eu não me lembro de nada, meu filho, pois estava bêbado.
domingo, 11 de abril de 2010
O riacho de Cotegipe
De manhã, ele era das lavadeiras. Umas lavavam roupa, outras a tralha de copa e cozinha – panelas, copos, pratos, tachos, talheres, gamelas e colheres-de-pau. Ficava tudo limpinho, areado com perícia e disposição. Ajudava muito a sombra das mangueiras seculares, de copas enormes e fechadas, por onde era raro passar algum raio de sol. Não havia cerca em volta delas e ninguém reivindicava sua propriedade, embora todos soubessem que possuíam donos. Na prática, pertenciam à comunidade, que delas usava e abusava. Na sombra daquelas mangueiras, faziam-se piqueniques, descansava-se, namorava-se, brincava-se e até brigava-se. Elas tinhas raízes enormes, que serviam de cama e cadeira. Como nem tudo é perfeito, havia sempre o risco de uma manga despencar na cabeça de alguém.
Quando terminava a faina das lavadeiras, os meninos e rapazes começavam a tomar conta do riacho de Cotegipe, dando “saltos mortais” nos peraus, para desespero das mães, ou pescando em algum ponto mais tranquilo. Pelo menos os pescadores mais hábeis nunca voltavam para casa sem uma fieira de pequenos bagres, alguns currubangos, mandins, piaus e, quando a sorte era maior, uma traíra como troféu. Peixes pequenos, porque os maiores não se interessavam por aquele modesto fio d’água dos brejeiros, preferiam a água larga e profunda do rio Grande, afluente imenso do São Francisco. Os próprios meninos tratavam seu pescado para a farofa a ser compartilhada com os amigos. Uma festa!
No período da seca, o riacho diminuía mas não secava, a não ser quando algum agricultor atrevido barrava a água com açude para irrigar sua roça ou horta. Nesses momentos, o prefeito, pressionado por queixas de todos os lados, era forçado a tomar alguma providência, mesmo sabendo que o fora-da-lei lhe dava apoio político. Também pesava em sua consciência saber que muitas e muitas famílias dependiam daquele córrego para sobreviver. Sem infraestrutura, a cidade toda se servia do riacho para matar a sede, e os potes de barro eram abastecidos antes do nascer do sol, quando a água era mais limpa.
- O que é que eu faço, Otacílio? – bradava o chefe do executivo municipal, no auge do desespero, a um de seus amigos, homem despachado, conhecido na cidade pela coragem incomum.
- Esbandaia, seu prefeito, esbandaia! – respondia invariavelmente o destemido Otacílio, que acabou pegando o nome de Otacílio Esbandaia.
Quase sempre, o problema era resolvido na base da conversa, sem necessidade de “esbandaiar” o açude com violência.
De uns anos pra cá, o riacho de Cotegipe veio diminuindo, diminuindo... até sumir. No tempo das chuvas, a água reaparece e corre, às vezes, com certa abundância, dando a impressão de que tudo se normalizou. Mera ilusão, pois quando chega a seca seu leito se transforma em estrada de barro e areia, como naqueles rios do semiárido nordestino.
Até as enchentes ficaram diferentes. Por mais que chova, elas são pequenas, tímidas, incapazes de assustar a população, exceto os desprotegidos moradores da rua do Tamarindo, que parecem estar à mercê de todo tipo de sofrimento. Lá não conta, pois até mesmo uma cabeça-d’água mais volumosa pode causar inundação. Enchente de verdade já não existe. É comum ouvir dos moradores mais velhos relatos de cheias colossais, inesquecíveis, que chegavam a tomar partes da cidade e a levar consigo casas, cercas e animais. “A de 39 foi a maior”, afirma um, “grande foi a de 53”, diz outro, “igual à de 65 nunca houve”, garante mais outro. Longe de mim defender esse tipo de enchente, e o leitor já deve ter percebido que meu objetivo aqui é o de apenas fazer uma comparação.
O certo é que o riacho está mudado, para não dizer morto, embora ainda permaneça vivo dentre de mim e de muitas outras pessoas. Se pudesse, eu o pegaria com as mãos e o recolocaria inteiro em seu leito para correr garboso como nos velhos tempos. De preferência, sem enchentes violentas e destruidoras.
Espero ainda por um milagre.
Quando terminava a faina das lavadeiras, os meninos e rapazes começavam a tomar conta do riacho de Cotegipe, dando “saltos mortais” nos peraus, para desespero das mães, ou pescando em algum ponto mais tranquilo. Pelo menos os pescadores mais hábeis nunca voltavam para casa sem uma fieira de pequenos bagres, alguns currubangos, mandins, piaus e, quando a sorte era maior, uma traíra como troféu. Peixes pequenos, porque os maiores não se interessavam por aquele modesto fio d’água dos brejeiros, preferiam a água larga e profunda do rio Grande, afluente imenso do São Francisco. Os próprios meninos tratavam seu pescado para a farofa a ser compartilhada com os amigos. Uma festa!
No período da seca, o riacho diminuía mas não secava, a não ser quando algum agricultor atrevido barrava a água com açude para irrigar sua roça ou horta. Nesses momentos, o prefeito, pressionado por queixas de todos os lados, era forçado a tomar alguma providência, mesmo sabendo que o fora-da-lei lhe dava apoio político. Também pesava em sua consciência saber que muitas e muitas famílias dependiam daquele córrego para sobreviver. Sem infraestrutura, a cidade toda se servia do riacho para matar a sede, e os potes de barro eram abastecidos antes do nascer do sol, quando a água era mais limpa.
- O que é que eu faço, Otacílio? – bradava o chefe do executivo municipal, no auge do desespero, a um de seus amigos, homem despachado, conhecido na cidade pela coragem incomum.
- Esbandaia, seu prefeito, esbandaia! – respondia invariavelmente o destemido Otacílio, que acabou pegando o nome de Otacílio Esbandaia.
Quase sempre, o problema era resolvido na base da conversa, sem necessidade de “esbandaiar” o açude com violência.
De uns anos pra cá, o riacho de Cotegipe veio diminuindo, diminuindo... até sumir. No tempo das chuvas, a água reaparece e corre, às vezes, com certa abundância, dando a impressão de que tudo se normalizou. Mera ilusão, pois quando chega a seca seu leito se transforma em estrada de barro e areia, como naqueles rios do semiárido nordestino.
Até as enchentes ficaram diferentes. Por mais que chova, elas são pequenas, tímidas, incapazes de assustar a população, exceto os desprotegidos moradores da rua do Tamarindo, que parecem estar à mercê de todo tipo de sofrimento. Lá não conta, pois até mesmo uma cabeça-d’água mais volumosa pode causar inundação. Enchente de verdade já não existe. É comum ouvir dos moradores mais velhos relatos de cheias colossais, inesquecíveis, que chegavam a tomar partes da cidade e a levar consigo casas, cercas e animais. “A de 39 foi a maior”, afirma um, “grande foi a de 53”, diz outro, “igual à de 65 nunca houve”, garante mais outro. Longe de mim defender esse tipo de enchente, e o leitor já deve ter percebido que meu objetivo aqui é o de apenas fazer uma comparação.
O certo é que o riacho está mudado, para não dizer morto, embora ainda permaneça vivo dentre de mim e de muitas outras pessoas. Se pudesse, eu o pegaria com as mãos e o recolocaria inteiro em seu leito para correr garboso como nos velhos tempos. De preferência, sem enchentes violentas e destruidoras.
Espero ainda por um milagre.
"A gruta da Lapa, basílica natual, aberta na rocha, é a mais majestática do globo. Rivaliza com a gruta de Lourdes, na França. É mais imponente, respeitada até por incrédulos."
Professora Joana Camandaroba, 96 anos, no seu livro "Memórias da Dinda". Ela é filha de Utinga e mãe da cidade da Barra, onde vive. Viajou pelo mundo inteiro.
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