domingo, 28 de fevereiro de 2010

Velho Chico na poesia



O São Francisco - Castro Alves

Longe, bem longe, dos cantões bravios,
Abrindo em alas os barrancos fundos;
Dourando o colo aos perenais estios,
Que o sol atira nos modernos mundos;
Por entre a grita dos ferais gentios,
Que acampam sob os palmeirais profundos;
Do São Francisco a soberana vaga
Léguas e léguas triunfante alaga!

Antemanhã, sob o sendal da bruma,
Ele vagia na vertente ainda,
— Linfa amorosa — co'a nitente espuma
Orlava o seio da Mineira linda;
Ao meio-dia, quando o solo fuma
Ao bafo morto de uma calma infinda,
Viram-no aos beijos, delamber demente
As rijas formas da cabocla ardente.

Insano amante! Não lhe mata o fogo
O deleite da indígena lasciva...
Vem — à busca talvez de desafogo
Bater à porta da Baiana altiva.
Nas verdes canas o gemente rogo
Ouve-lhe à tarde a tabaroa esquiva...
E talvez por magia à luz da lua
Mole a criança na caudal flutua.

Rio soberbo! Tuas águas turvas
Por isso descem lentas, peregrinas...
Adormeces ao pé das palmas curvas
Ao músico chorar das casuarinas!
Os poldros soltos — retesando as curvas, —
Ao galope agitando as longas crinas,
Rasgam alegres — relinchando aos ventos —
De tua vaga os turbilhões barrentos.

E tu desces, ó Nilo brasileiro,
As largas ipueiras alagando,
E das aves o coro alvissareiro
Vai nas balças teu hino modilhando!
Como pontes aéreas — do coqueiro
Os cipós escarlates se atirando,
De grinaldas em flor tecendo a arcada
São arcos triunfais de tua estrada!...

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Crime em Xiquexique

Estou estarrecido. Isso é o mínimo que posso dizer sobre o meu estado de espírito neste momento. Explico, leitores. É que acabei de ler no Blog Xiquexique (http://xiquexiquense.blogspot.com) a crônica de um crime cultural dos mais absurdos: a demolição do belo prédio que abrigava a Prefeitura Municipal, construído na última década do século XIX, para dar lugar a uma dessas construções modernosas e sem estilo que podem ser encontradas facilmente em qualquer periferia de cidade média ou grande. É certo que o fato ocorreu em 1963, mas não deixa de ser um desastre.

Que me perdoem os xiquexiquenses pelo desabafo. Sei que devem existir muitos outros casos semelhantes no vale do São Francisco, como os de Januária e Barra citados aí abaixo, mas nada justifica a barbaridade de destruir nosso patrimônio cultural que, em última instância, é o que nos faz sanfranciscanos e não outra coisa qualquer.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Sojismundo

"Soja, sojinha minha,
Cresce, cresce bonitinha,
Eu quero te ver um dia
Maior que uma melancia".

Recado do feiticeiro

Palavras do feiticeiro de São Romão:

"Aquele ou aquela que, em nome do progresso ou do dinheiro, demolir edificações de valor histórico terá a mesma sina do Romãozinho, ou seja, viver vagando pelo mundo sem ter um canto que lhe sirva de lar."

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Vida nova à casa velha

Devolver a vitalidade física ao rio São Francisco é tudo de bom, mas temos que pensar também em um novo tipo de revitalização.

Lendo o artigo “História e memória de Januária”*, de Ana Alaíde Barbosa Amaral, que trata de patrimônio histórico e identidade, fiquei a pensar sobre a necessidade de tratarmos o problema da revitalização do rio São Francisco de um campo de visão maior do que o trivial. Quando se fala em revitalização, a idéia geral parece ser simplesmente a de recuperar matas ciliares, desassorear o rio, controlar a erosão e realizar obras de saneamento básico. Os mais ousados chegam a indicar a necessidade de regular a até rever o modelo de atividades econômicas que têm impactos físicos e ecológicos sobre o Velho Chico, especialmente a agricultura de exportação que vem devastando o cerrado.

Tudo isso é imprescindível e urgente, mas parece que a dimensão cultural, tão importante quanto as outras, não está sendo lembrada. É até possível que a idéia de revitalização seja confundida com modernização, progresso, renovação e por aí afora, e que as populações ribeirinhas, seguindo a trilha das elites, reforcem o entendimento de que é preciso destruir tudo aquilo que se considera antigo para dar lugar a alguma novidade. Uma frase do artigo de Ana Alaíde sobre Januária ficou bem marcada em minha memória: “A sociedade local sempre entendeu que o progresso da cidade viria se fossem demolidas as ‘casas velhas’”. Ela cita a demolição de várias igrejas de valor histórico para a cidade e do Colégio São João, “tradicional estabelecimento de ensino, referência na região e no Estado (durante décadas nele vinham estudar alunos do interior da Bahia e até de Goiás)”.

Essa mentalidade não é exclusiva de Januária e nem é nova. Desde a segunda metade do século XIX, a sociedade do médio São Francisco vem sendo seduzida pela ideologia do progresso, que prega o descarte do antigo e sua substituição pelo novo. Lembro-me que na cidade da Barra um velho casarão secular, de importância histórica e arquitetônica inegável, teve que ir ao chão para que fosse construída uma “moderna” agência do Banco do Brasil. Exemplos como esses devem jorrar aos borbotões ao longo do Velho Chico. Alguma influência do positivismo? É possível, mas o mais provável é que, na falta de qualquer incentivo oficial para a preservação, prevaleça o interesse econômico que leva à destruição.

Diante dessa realidade, é necessário pensar numa revitalização cultural do rio São Francisco, não apenas no sentido de preservar os bens materiais e imateriais, o que não é pouca coisa, mas de dar nova vida a eles. Esse papel não é apenas do Estado e sim do povo do Velho Chico, que soube desenvolver uma das culturas mais fascinantes do Brasil, desde épocas anteriores ao seu descobrimento.

A arquitetura deu o mote para este artigo, mas há outras faces da rica cultura sanfranciscana que devem ser revitalizadas. Penso, por exemplo, na culinária com suas incontáveis expressões. Falando em culinária, não há como esquecer que os peixes estão diminuindo e que é preciso fazer com que eles voltem às nossas águas e passem novamente a alimentar as populações ribeirinhas. Os especialistas dizem que a causa principal do sumiço dos peixes são as barragens. Ao regularem o fluxo das águas, elas impedem que haja grandes enchentes e, portanto, a formação das lagoas onde a fauna ictiológica sempre se reproduziu e se multiplicou. Deve haver alguma solução para este problema.

As festas populares, a mitologia, a literatura oral e escrita, os costumes, a linguagem e tantas outras manifestações da cultura precisam também ser revitalizadas, no sentido de que devem ser estimuladas. A revitalização cultural, a meu ver, não é uma mera restauração do passado e sim um processo de construção em que passado e presente dialoguem. Nas relações entre a cultura local e as outras, acho que o melhor caminho é seguir o exemplo dos modernistas e adotar a antropofagia como método de assimilação. Trata-se de uma defesa para que não sejamos completamente engolidos pelo vendaval que vem de fora e, ao mesmo tempo, de uma estratégia de estímulo ao impulso criativo.

* O artigo pode ser encontrado em http://www.arquitextos.com.br/minhacidade/mc227/mc227.asp.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Cantiga dos remeiros*

Juazeiro da lordeza
Petrolina dos missais
Santana dos Cascais
Casa Nova da carestia
Sento Sé da nobreza
Remanso da valentia

Pilão Arcado da desgraça
Xiquexique dos bundão
Icatu cachaça podre
Barra só dá ladrão

Morpará casa de palha
Bom Jardim da rica flor
Urubu da Santa Cruz
Triste do povo da Lapa
Se não fosse o bom Jesus

Carinhanha é bonitinha
Malhada também é
Passa Manga e Morrinho
Paga imposto em Jacaré

Januária carreira grande
Corrente meia carreira
Bate o prego em Santa Rita
Pra cagar mole em Barreira

São Francisco da Arrelia
São Romão das feiticeiras
Extrema dos Cabeludo
Pirapora é da poeira

* Os remeiros e as prostitutas formavam a classe considerada a mais baixa da sociedade do São Francisco. Nos tempos em que as barcas não possuíam velas nem motores, eram eles que as movimentavam rio abaixo e rio acima, utilizando remos e varejões, para transportar mercadorias e passageiros.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

O Velho Chico sem chavões

Estou relendo o livro “Na carreira do rio São Francisco”, de Zanoni Neves. Com a naturalidade de um barranqueiro de Pirapora, cidade onde nasceu e passou grande parte de sua vida, ele navega pelas corredeiras da história, perpassa as croas da economia e mergulha nas profundezas da sociologia e da antropologia sanfranciscanas, sem perder de vista a limpidez do texto.

O título já é uma boa indicação do que está dentro do livro, pois remete às viagens que eram realizadas rio acima e rio abaixo, desde os tempos coloniais até a segunda metade do século XX, embora seu objetivo explícito seja analisar o trabalho e a sociabilidade dos vapozeiros, tripulantes dos barcos a vapor. Faz-nos lembrar a célebre cantiga dos remeiros, conhecida dos habitantes das margens do São Francisco, pelo menos dos mais velhos:

“Januária é carreira grande,
Corrente é meia carreira...”

Os remeiros, aqueles que empunhavam as varas na subida do rio e os remos na descida para impulsionar as antigas barcas, eram contratados por “viagem redonda” - itinerário de ida ao porto de destino e volta ao de origem. Para eles, “carreira inteira” era a viagem de Juazeiro a Pirapora, “carreira grande” a de Juazeiro a Januária, e “meia carreira” a de Juazeiro a Santa Maria da Vitória, no rio Corrente.

O livro de Zanoni faz uma viagem pela história do Velho Chico e procura definir e entender o papel de cada grupo social envolvido no que ele chama de Sistema Econômico Regional, o qual se integrava a sistemas mais amplos de alcance nacional e internacional. É aí que passamos a entender como um simples remeiro, que representava a classe mais baixa da sociedade sanfranciscana, ajudando a transportar mercadorias das mais diversas procedências, inclusive Manchester, na Inglaterra, contribuía para o desenvolvimento do Sistema Econômico Regional e, por conseqüência, dos outros sistemas que com ele interagiam.

O autor mostra também como o conhecimento e as tecnologias populares se somaram ao conhecimento dito científico ao longo da história do rio, e um dos diversos exemplos citados é o da navegação, em que práticas e saberes herdados dos índios acabaram por ser adotados nas barcas e nos vapores.

Nesse ponto, Neves demonstra como a ideologia do progresso, que impregnou os corações e mentes das elites regionais, já a partir do século XIX, orientou o crescimento econômico na bacia do São Francisco e exerceu influências no campo político. Em que pese o desprezo que os defensores da ideologia do progresso tinham pelas tecnologias tradicionais, elas continuaram a conviver com outras mais novas, tidas como símbolos de modernidade. Carros de bois e caminhões, carroças e locomotivas, canoas, paquetes, ajoujos, barcas e vapores, o velho e o novo andavam lado a lado e atuaram sinergicamente para dar vida ao Sistema Econômico Regional.

Um dos traços que marcou a ideologia do progresso foi o desprezo pelo meio ambiente, observa o autor. Como um dos exemplos, ele cita a introdução dos vapores na navegação. É verdade que eles trouxeram rapidez e aumento da capacidade de transporte de pessoas e cargas, porém, sendo embarcações que usavam a lenha como combustível, acabaram por provocar, em grande medida, a destruição das matas ciliares e, em conseqüência, o desbarrancamento e o assoreamento do rio.

O livro de Zanoni nos transporta pelo Velho Chico e nos permite acompanhar de perto a vida da tripulação, tanto na lida diária no interior do vapor, em todos os seus aspectos, quanto nas suas relações com as populações ribeirinhas. A categoria dos vapozeiros era dividida em três grupos: o “pessoal de bordo”, composto pelas tripulações, o “pessoal das oficinas” e o “pessoal dos escritórios”. Essas duas últimas compunham o grupo do “pessoal de terra”. As tripulações, que formavam o grupo do “pessoal de bordo”, eram distribuídas em diversos subgrupos, respeitando a divisão do trabalho.

Zanoni leva-nos também a uma viagem sentimental, mostrando o clima afetivo que envolvia vapores e habitantes da ribeira, ao ponto de cada uma dessas embarcações serem reconhecidas pelo som de seu apito. O próprio autor, filho de comandante de vapor, tendo viajado muitas vezes nessas embarcações, testemunhou fatos que comprovavam essa aproximação.

Nessa viagem histórica e sentimental, destacam-se as histórias de vida de quatro personagens fascinantes do velho rio: João Francisco de Souza, o prático ou piloto mais conhecido como João de Félix; Joaquim Borges das Neves, o comandante Joaquim Sereno para seus colegas; Antônio de Souza, o rigoroso comandante que mudou a vida de um ladrão; e Antônio Joaquim D´Almeida Roque, o maquinista que veio de Portugal.

Acredite, leitor: aquele que ler o livro de Zanoni Neves nunca mais verá o Rio São Francisco da mesma forma. Nestes tempos de massificações banais e repetições emburrecedoras de chavões e idéias insignificantes, a obra desse autor de Pirapora pode ser um ótimo remédio para nos curarmos do mal de desconhecimento sobre o rio mais querido e importante do Brasil.

Serviço
Título do livro: Na carreira do rio São Francisco
Autor: Zanoni Neves
Nº de páginas: 289
Editora Itatiaia (Belo Horizonte)

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Filosofia da célula cancerosa

Parece que alguma coisa começa a acontecer na nova ordem mundial e que os adoradores de uma planta só, entupidores e envenenadores de rios poderão enfrentar obstáculos mais sérios a suas práticas nocivas ao ambiente natural e, por conseqüência, à sociedade. Será que as pragas do feiticeiro de São Romão estão dando certo? Batam na madeira, porque os homens têm poder e não são de brincadeira.

Vejam abaixo alguns trechos de uma matéria publicada ontem no jornal Valor Econômico, pela colunista Cláudia Safatle.

"O Banco Central do Brasil começou a acordar para os danos sócio-ambientais que o crescimento econômico pode causar. 'Crescer por crescer é a filosofia da célula cancerosa', cita Sérgio Lima, consultor do presidente do BC, reproduzindo as palavras que ouviu, durante um seminário, do economista Ladislau Dowbor que, por sua vez, atribui a autoria do aforismo a um banner colocado por um grupo de estudantes na entrada de uma conferência sobre economia."
...
"Lima foi encarregado de elaborar a proposta de estruturação do Departamento de Responsabilidade Social do Banco Central, depois que um voto da diretoria da instituição determinou o ingresso desse tema no organograma do banco no ano passado. Ele concluiu o trabalho no segundo semestre de 2009. Falta, porém, a direção do BC tirar a ideia do papel com celeridade, colocá-la em prática e, mais do que isso, incorporar novos elementos de preocupação com a preservação do ambiente e a inclusão social às normas que regem a política de crédito no país."
...
"Na próxima semana, haverá um seminário no qual os estudos e sugestões elaborados até agora serão apresentados à diretoria e aos funcionários do BC. Uma das propostas será que os bancos, tanto públicos quanto privados, passem a incorporar nas suas áreas de análise de risco o perigo ambiental dos projetos que financiam."

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Dona Lurdes: carranqueira, cantora, poetisa, escritora... *

O Velho Chico é um rio rico em contradições, de muitas belezas e problemas, de riqueza e pobreza, de histórias e lendas. E dentro da imensidão de vidas ligadas às águas, uma, especialmente, merece ser contada. É a de Maria de Lurdes Gonçalves Lopes, 60 anos, ou dona Lurdes, como é conhecida em Pirapora-MG, habilidosa carranqueira, cantora, poetisa, escritora e amante das águas.As aventuras de dona Lurdes começaram aos 12 anos, quando um circo passou por sua cidade natal, Serrinha, perto de Salvador, na Bahia. “Eu fui lá, cantei, e o dono do circo gostou. Me chamavam de Cigarra Boêmia de Serrinha”, relembra. Para cantar, ela saía escondida de casa, pois sua família não aceitava a vida de artista, coisa imprópria para uma moça de família. A aventura durou um mês, até quando seu pai assistiu a um espetáculo. Embora tenha gostado da apresentação, ele e sua mãe a obrigaram a largar a recém começada carreira com uma surra de uma dúzia de palmatórias.

Mas dona Lurdes não era moça que aceitava ordens ou desistia de suas vontades. Por isso, continuou fugindo de casa até os 16 anos, para cantar, até conseguir mudar para Salvador, estudar música e participar como corista da Orquestra Azevedo. Nessa época, ela chegou até a cantar na Rádio Excelsior da Bahia.

Apresentando-se em boates e festas, a moça destemida conheceu várias pessoas, muitas importantes e influentes. Uma delas era o político baiano Waldir Pires, opositor à revolução e ao governo militar recém outorgado, uma influência nas idéias dela própria. Essa ligação com a esquerda, em uma época de violentas perseguições políticas, mudou sua vida: ela decidiu voltar escondida para Serrinha. “Eu tinha muito medo, principalmente pelo meu pai, que sustentava uma casa com tantos filhos. Tinha uns dois vizinhos na minha rua que sumiram e nunca mais voltaram”, conta, ainda assustada.

Logo depois da fuga, ela recebeu um telegrama anônimo, com instruções para se juntar a uma certa companhia teatral e seguir até Juazeiro. No caminho, o grupo embarcou em uma antiga barca a vapor que fazia o trajeto Pirapora-MG a Petrolina-PE, navegando pelo Rio São Francisco. Entretanto, todos os passos de dona Lurdes foram seguidos por um misterioso homem, sujeito desconhecido, sempre calado, carregando uma maleta preta.

Para a sorte de dona Lurdes, a barca, chamada São Francisco, tinha no comando um homem decidido e corajoso, o capitão Francisco Barroso, um antigo namorado. Quando o homem misterioso, ainda dentro do vapor, deu voz de prisão à contra-revolucionária, o capitão saiu em sua defesa.

“Barroso disse para ele: ‘Eu sou o capitão e daqui ela não sai. Quem vai se retirar é o senhor’. E então eu fiquei dentro do barco por mais cinco anos, com medo de ser presa”, conta dona Lurdes, que sofre até hoje de depressão e toma remédios controlados, devido ao pavor que sente dos tempos de repressão da ditadura.
Então, por cinco anos, ela ficou embarcada em barcos a vapor, cruzando para cima e para baixo o Velho Chico, levando mercadorias de Minas Gerais para Bahia e Pernambuco e vice-versa, descendo a terra sempre às escondidas, sempre ao lado de seu protetor, o comandante Barroso.

“Foi o tempo todo vendo as mesmas coisas. De olhos fechados, eu conhecia todas as curvas do rio”, conta, melancólica. Mas mesmo restrita às embarcações, dona Lurdes continuou cantando – se apresentava como Lurdinha Barroso -, aprendeu os rudimentos da arte da carranca e casou-se com o amor de sua vida, o capitão Barroso.
“Ele era 30 anos mais velho que eu, mas homem igual aquele não existe mais. Ele era pai, protetor, amante e marido”, lembra saudosa do companheiro, mas forte, sem derramar uma lágrima. Dona Lurdes conta que o velho capitão era um homem de muitas mulheres, com namorada ou família em cada porto que passava, mas abdicou de todos os outros amores por ela. “Antes de mim, tudo bem, mas depois que nós casamos, era só eu. Eu brigava com ele, e acabou largando todas as outras, vivia para mim, me enchia de presentes, me dava lingerie de renda e de seda”, afirma.

Barroso também foi o principal mecenas de dona Lurdes. Presenteou a esposa com os primeiros instrumentos para ela começar a esculpir carrancas e incentivou-a a aprimorar sua técnica. Levou para conhecer o mestre carranqueiro Guarani, que ao ver a novata esbravejou: “Não vou ensinar nada, não”. Mas Dona Lurdes aprendeu as técnicas do velho professor só de olhar.

Em 1997, capitão Barroso morreu, já com 86 anos, e dona Lurdes “quase foi também”. Mas hoje, para espantar a tristeza e a dor da perda, ela recorre a várias atividades sociais em que participa na comunidade, ao carinho dos filhos que teve com o marido – Francisco Walber, Francyslady, Charles, Teodoro Pereira Neto e Luana Lara Janaína – e ao artesanato de carrancas. Além disso, ainda ocupa seu tempo escrevendo suas memórias, mesmo “não sendo uma mulher de muita escrita”.

*Texto publicado inicialmente em Velhochico.net

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Dom Ricardo está certo

Gostei muito de um artigo publicado na semana passada em um jornal de Barreiras pelo bispo daquela cidade, d. Ricardo Weberberger, a propósito de um certo movimento a favor da criação de um determinado Estado do Rio São Francisco. Depois de observar que a região onde se estabeleceria a nova unidade da federação “ainda é politicamente fraca”, além de ser “social e economicamente marcada por grandes diferenças e desigualdades”, o bispo, demonstrando ótima pontaria, atinge o foco central do problema, ao perguntar: “Quem vai arcar com os custos do movimento político, de eleições? Não será o grande capital que vai definir candidaturas políticas?”

Em seu comedimento de líder religioso, d. Ricardo não dá nomes aos bois, mas revela uma aguda percepção do que ocorre atualmente na região que querem transformar em Estado. Peço ao prezado leitor que analise com serenidade o raciocínio que me levou a concordar com o bispo. Então vejamos. Caso seja obedecida a demarcação proposta pelo parlamentar pernambucano Gonzaga Patriota, que apresentou projeto de lei na Câmara dos Deputados, o tal Estado compreenderia a parte do território baiano localizada à esquerda do rio São Francisco, justamente a área dominada por fortes grupos econômicos dedicados à monocultura de exportação. Não será esse o grande capital a que d. Ricardo se refere?

O certo é que nenhuma outra força regional está perto de se equiparar a esses grupos no campo da economia, o que significa não estar apta, em termos financeiros, a disputar com eles a conquista do poder político. Em outras palavras, concretizando-se o novo Estado, suas instituições cairiam completamente nas mãos dos grandes produtores de soja e algumas outras commodities agrícolas, de forma a aumentar exponencialmente a capacidade desses grupos para buscar lucros e vantagens. Esse seria o caminho mais curto para se atingir a destruição completa do cerrado, acompanhada do entupimento e do envenenamento dos rios.

Sabemos que os tais grupos são os principais responsáveis pela destruição do cerrado no oeste da Bahia e estão substituindo uma riquíssima biodiversidade por plantações de soja, algodão e café, além de usarem a água dos rios de forma irresponsável e contribuírem fortemente para seu assoreamento. Para completar o desastre, os mananciais são envenenados por toneladas de agrotóxicos que os poderosos agricultores despejam em suas lavouras. Se isso está acontecendo sem que eles ainda dominem a máquina do Estado, podemos imaginar o que nos espera quando tomarem o poder político.

Ninguém duvida de que eles têm como meta principal o lucro, pois isso é da natureza do capitalismo, mas, como sempre ocorre, esses grupos tentam se legitimar hipocritamente perante a sociedade. Como estratégia de legitimação, trazem à mesa o cardápio mais do que conhecido de justificativas: promoção do desenvolvimento, geração de empregos e obtenção de divisas. Acredite quem quiser.

Na verdade, o desenvolvimento alegado não passa de crescimento econômico puro e simples, sem qualquer preocupação social e ambiental. Para usar um termo da moda, é um crescimento insustentável. A geração de emprego é insignificante, considerando-se os prejuízos debitados na conta da natureza e o enorme contingente de mão-de-obra que vaga por nossas cidades. Tratando-se de uma agricultura intensiva no uso de máquinas, o que resta para o trabalho humano é muito pouco. A obtenção de divisas é real, mas a forma de obtê-las não é das melhores. Divisas podem ser conseguidas das mais diversas formas, e é uma pena que nosso país dependa tanto da exportação de commodities agrícolas para equilibrar sua balança comercial. Esse fato só revela o nosso atraso em termos educacionais e de desenvolvimento científico e tecnológico.

Nós do povo, que só provamos do fel da monocultura de exportação, não podemos ingenuamente aceitar que nos enganem com argumentos aparentemente corretos ou com apelos sentimentalistas e falsos a respeito do tal Estado do São Francisco. Há até quem sustente que o oeste baiano em nada se identifica culturalmente com as outras regiões da Bahia e existe quem recorra, para defender essa tese, ao fato histórico de que as terras situadas na margem esquerda do rio São Francisco pertenceram a Pernambuco até 1824.

Tomando-se a questão cultural como critério para a formação do novo Estado, então deveríamos respeitar todo o território do médio São Francisco e não apenas a área baiana à esquerda do grande rio, pois o que existe de específico por essas bandas é uma cultura sanfranciscana, moldada em séculos de isolamento como bem mostrou Wilson Lins. Além disso, se formos observar o critério cultural para justificar a idéia separatista, teremos forçosamente de admitir que o Brasil deve se dividir para formar vários países, considerando-se as notórias diferenças entre suas regiões. Será que os brasileiros concordam com isso?

Não podemos nos iludir com argumentos oportunistas ou ingênuos, assim como não devemos nos comportar como a boiada que segue apenas um boi, não importando o rumo tomado. Para reflexão, replico aqui uma das frases do artigo de d. Ricardo: “Um novo Estado deve ter uma forte base ética que coloque no centro a pessoa e o bem comum e não a economia”.

Será que Nazário morreu?

- Nazário morreeeu!
- O couro é meeeeu!

Será se alguém ainda se lembra do Nazário? A noite de quarta-feira de cinzas sempre foi dedicada a essa estranha personagem em muitas cidades da bacia do São Francisco. Por onde anda ele? Quem souber, que me conte.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Perfil do mestre João de Félix

Zanoni Neves*

O Sr. João Francisco de Souza (João de Félix) nasceu em Santana de Sobradinho (BA) em maio de 1913. Conheceu a aspereza do trabalho no campo desde a infância. Seu pai, Sr. Félix Francisco de Souza, viajava nas barcas de figura, deixando sua roça sob os cuidados da esposa e dos cinco filhos, todos homens. Os pequenos cultivos de mandioca, feijão, milho, abóbora, melancia, batata e arroz possibilitavam a sobrevivência digna da família. No calejar do peito e das mãos, o Sr. Félix ganhava o pequeno salário de embarcadiço para comprar outros produtos não produzidos no campo, dos quais a família necessitava: o querosene, o calçado, as roupas, o medicamento etc.

Ainda na adolescência, o jovem João Francisco de Souza abraçou a profissão do pai, tornando-se remeiro. Herdou dele também o patrônimo Félix, tornando-se mais conhecido entre os fluviários como João de Félix. Os quatro irmãos também ocuparam as coxias das barcas. Inicialmente, João Francisco trabalhou em pequenas embarcações de propriedade do seu tio, Sr. Eugênio Carioca, viajando para Remanso, Xique-Xique e Barra (BA). Na primeira metade dos anos 1930, já estava engajado em barcas maiores que partiam de Juazeiro com destino a Barreiras, no rio Grande, e a Santa Maria da Vitória, no rio Corrente – ambas no Estado da Bahia.

A faina diária nas barcas começava ao nascer do dia com os primeiros raios de sol ou, até mesmo, de madrugada, e terminava à tarde quando o sol desaparecia no horizonte. O “varejão”, ou seja, a vara utilizada para impulsionar as embarcações nas viagens rio acima, provocava ferimentos no tórax dos remeiros. Em entrevista, o Sr. João Francisco mostrou a marca que esse instrumento de trabalho deixou em seu peito – passados 50 anos desde que havia abandonado o trabalho nas referidas barcas.

O Sr. Benvindo Francisco de Souza, o irmão mais velho, foi o primeiro a deixar o trabalho de “arrastar vara” nas barcas de figura, tornando-se marinheiro de vapor. Por sua iniciativa, os demais irmãos seguiram-lhe o exemplo. Em 1940, João Francisco começou a viajar a bordo dos “gaiolas” da CIVP – Companhia Indústria e Viação de Pirapora, exercendo a função de marinheiro, que no Médio São Francisco implicava trabalhar na estiva, entre outros encargos. Mais tarde, tornou-se praticante de prático, ou seja, aprendiz de timoneiro. Alguns anos depois, alcançou o cargo de prático ou mestre conforme a linguagem dos embarcadiços – ou piloto na terminologia das empresas de navegação e da Capitania Fluvial dos Portos. Em 1969, aposentou-se na FRANAVE – Companhia de Navegação do São Francisco como piloto fluvial. Dos cinco irmãos, quatro foram timoneiros nos vapores do Velho Chico. Rafael de Souza, filho do primeiro casamento do Sr. João Francisco, também pertenceu à classe dos fluviários, exercendo a profissão de maquinista dos vapores.

Depois de se aposentar, o Sr. João Francisco de Souza casou-se em segundas núpcias com a Sra. Guiomarzina Rodrigues Soares que foi cozinheira nos vapores da FRANAVE.

Depois de viajar muitos anos em companhia do Sr. João Francisco de Souza, o Comandante Joaquim Borges das Neves dizia-nos em entrevista: “No quarto do João, eu dormia tranqüilo!” Esta frase significa que, no turno de trabalho do Mestre João de Félix, o vapor navegava sem risco de colisões em pedras e troncos.

Durante o meu trabalho de pesquisa sobre navegação no Rio São Francisco, o Sr. João foi o principal informante.

* O autor nasceu em Pirapora e é bacharel em Ciências Sociais pela UFMG, pós-graduado em Sociologia pela PUC-MG e mestre em Antropologia Social pela Unicamp, tendo publicado diversos trabalhos sobre o Velho Chico, entre os quais o livro "Na Carreira do Rio São Francisco".

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Desmatamento de mulheres

A velha beata parou em minha frente, no meio da rua, em Bom Jesus da Lapa, para comentar a notícia que tinha recebido de um padre. Sorriu, levantou as mãos para o céu e falou em voz alta, de forma que as pessoas mais próximas puderam ouvir:

- O Bom Jesus é quem nos protege, ele e a virgem Maria! Agora elas vão ver. Estou de alma lavada.

Fiquei curioso. Havia como não ficar?

- Do que está falando, minha velha?

Essas beatas são muito pacientes, e não seria eu que mudaria seu jeito de ser e a obrigaria a modificar o roteiro de uma conversa apenas porque eu estava apressado. Aquela mulher fora treinada em anos e anos de rosário, rezando seguidamente centenas de ave-marias com intercalações periódicas de pai-nossos, como se estivesse repetindo um mantra oriental.

- Meu filho – continuou calmamente a velha mulher – o padre José não é homem de mentira e foi ele quem me contou esta história.

Tive que me acalmar e controlar a curiosidade para não ser grosseiro com uma pessoa tão amável. Peço que o leitor também tenha paciência. Esperei em silêncio e ela continuou:

- Pois hoje mesmo o padre veio me dizer que aquelas vadias da beira do rio...

- As raparigas! – interrompeu um gaiato que ouvia da calçada do bar.

- Aquelas raparigas sem-vergonha – retomou a beata – elas vão ter que ficar bem longe da gruta, graças ao Bom Jesus e Nossa Senhora. Padre José me disse que o bispo conversou com o prefeito e ele vai botar a polícia no pé dessas perdidas. Vão embora no chicote.

- As bichinhas são tão boas! – gritou outro gaiato.

- É porque você é um perdido igual a elas, aquelas cobras de asa – respondeu a velha demontrando revolta na voz.

No meu íntimo, eu considerava aquilo uma violência com as pobres prostitutas. O local escolhido por elas para exercer a profissão - as proximidades da gruta do Bom Jesus - não era certamente o mais adequado do ponto de vista da igreja, mas isso não dava direito ao bispo de escorraçá-las como animais. Além disso, elas também tinham lá suas razões, pois precisavam trabalhar para sustentar os filhos e aquele era o ponto de maior movimento, para onde acorriam romeiros e turistas. Não é assim que funcionam os negócios? Enquanto estava imerso nesses pensamentos, fui surpreendido por uma pergunta inesperada da beata:

- Você concorda comigo, meu filho?

Foi o suficiente para eu ficar zonzo e suar frio. Ainda mais que uma numerosa platéia assistia ao espetáculo das calçadas próximas em frente aos bares. A mulher fixou aqueles olhos profundos e expressivos nos meus e perguntou incisivamente:

- Concorda ou não concorda? Ficou mudo? Seja homem!

O suor descia pela testa e eu não tinha como disfarçar. A beata certamente havia percebido minha fraqueza, pois me olhava da cabeça aos pés com ar de desprezo, fazendo-me sentir um zé-ninguém ali na capital da romaria, a meca católica do rio São Francisco. Meus pensamentos e idéias estavam bloqueados e eu não sabia o que fazer. Foi aí que alguém gritou, inesperadamente e em tom de deboche, de uma das calçadas:

- O bispo vai fazer desmatamento de mulher!

A onda de gritos, assovios e gargalhadas que inundou a rua acabou por atrair muita gente, até os turistas e romeiros que tinham ido para a festa do Bom Jesus. Como eu não queria ser “desmatado” pela rigidez moral da beata, não perdi aquela oportunidade e sumi na multidão. Achei melhor fazer uma visita à gruta do Bom Jesus.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Dossiê da UnB revela situação do cerrado

Um dossiê abrangente sobre o cerrado brasileiro, que merece ser lido com atenção, foi publicado na edição nº 2 – setembro e outubro de 2009 - da revista Darcy, publicação da Universidade de Brasília (UnB) especializada em jornalismo científico e cultural.

Uma das revelações do dossiê é a informação de que a velocidade de desmatamento no cerrado é duas vezes maior do que na Amazônia, de acordo com dados divulgados pelo ministério do Meio Ambiente em setembro último. Foi constatado que metade da área original daquele bioma foi desmatada, o que representa quase um milhão de quilômetros quadrados, valor correspondente a 1/8 de todo o território nacional. “Agora, as árvores dão lugar a plantações de soja e pastos para gado. A madeira delas vira carvão para siderúrgicas”, constata o dossiê. O Maranhão e a Bahia lideram o ranking dos estados que mais destruíram o cerrado nos últimos anos.

O documento declara que “o modelo de preservação baseado em unidades de conservação está esgotado”, pois não garantem a sobrevivência da fauna e da flora nativas, conforme pesquisa da UnB. “Criadas para proteger a savana com a maior biodiversidade do mundo, as áreas de conservação estão sitiadas por fazendas e cidades”, afirma.

Nem só de notícias ruins é composto o dossiê. Nele são encontrados relatos de experiências bem-sucedidas que se basearam na exploração sustentável do Cerrado. É o caso da Associação dos Produtores e Beneficiadores de Frutos do Cerrado (Benfruc), estabelecida na cidade goiana de Damianópolis, que produz geléias de cagaita, óleos, farinha de jatobá e farinha de pequi, além de polpa para a produção de sorvete.

Leia o dossiê completo em http://www.revistadarcy.unb.br/wp-content/uploads/2009/11/darcy02.pdf

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Poeta sabe das coisas

“Nem tudo que é torto é errado. Veja as pernas do Garrincha e as árvores do Cerrado”.

Nicholas Behr - Poeta de Brasília

sábado, 6 de fevereiro de 2010

O saxofonista misterioso

Tinha nome de cantor popular, e artista popular ele era também. Apesar das roupas velhas e dos cabelos desgrenhados, era charmoso e carismático em sua personalidade forte, à beira do autoritarismo, uma espécie um Beethoven sertanejo. Quem mais temia Roberto Braga eram as crianças, mas eram elas também quem mais se divertia com ele. Não sei se por brincadeira ou outra razão qualquer, quando um menino se aproximava, o estranho homem pressionava os lobos das orelhas com os dedos indicadores e enviava-lhe uma cusparada quase sempre certeira.

Nas primeiras vezes que isso aconteceu, houve protestos e revolta, tanto de pais quanto de filhos. Até Tico, o louco declarado da cidade, que atirava pedras e falava palavrões não importando o ambiente, quis tirar satisfações com o desrespeitoso personagem. “Esse doido não tem respeito nem pelas crianças”, bradou Tico numa da vezes que Roberto Braga cuspiu em um menino. Ele tinha acabado de jogar uma pedra em um garotinho que o provocara. O artista não quis conversa e voltou rapidamente para dentro do bar onde tomava cerveja com amigos.

Aos poucos, as pessoas foram se acostumando com aquela figura exótica que, apesar do comportamento inusitado, não demonstrava sentir raiva ou ódio. Não, Roberto Braga não era rabujento ou intolerante, até denotava simpatia sutilmente, e foi isso que as crianças perceberam em pouco tempo, pois passaram a ver nele uma oportunidade para brincadeiras sem correr riscos, a não ser o de levarem um golpe de cuspe no rosto. Eu acho que ele também se divertia muito com tudo aquilo.

A diversão que Roberto Braga levava para os adultos também não era pequena. Foi o maior saxofonista que eu conheci, não devendo nada a Domingos Pecci ou Luiz Americano, nomes que tinham grande prestígio naquelas bandas da bacia do rio São Francisco. Ali mesmo no bar, quando ele desencaixotava as primeiras notas do seu sax dourado, uma pequena multidão se reunia em silêncio para ouvir. Era um som infernal e celestial, demoníaco e divino, emocionante e confortador, saudoso e repleto de esperança. Só um grande artista ou um santo são capazes de fazer um milagre daquele.

Roberto Braga não era santo, mas era o próprio mistério. Ninguém podia afirmar com certeza de onde ele viera e porque fora parar ali. Desculpe, leitor, a expressão “parar ali” não é propriamente verdadeira, já que nosso artista não parava em lugar algum, vivendo como um andarilho pelos caminhos do São Francisco. Um dia, na cidade da Barra, outro em Barreiras, depois Ibotirama, seguindo para Paratinga no rumo de Bom Jesus da Lapa. Assim ele levava a vida.

Diziam que ele nascera em Casa Nova, muito antes dessa cidade submergir no lago de Sobradinho, e era filho de uma família importante, mas nada está comprovado. Em respeito ao meu compromisso com a verdade, não vou colocar minha mão no fogo por essa história. Falavam também que lá mesmo em Casa Nova ele viveu uma paixão muito forte pela moça mais bonita do lugar e acabou sendo traído horrorosamente pelo rapaz que mais odiava. Essa seria a razão de ter saído a vagar sem destino pelo mundo. De novo, nada posso garantir.

Outro mistério ainda não resolvido é o que envolve sua genialidade artística. Ninguém sabe ao certo onde aprendeu a tocar e, muito menos, como adquiriu tão grande habilidade no sax. Alguns dizem que começou em Casa Nova e depois foi se aperfeiçoar em Juazeiro, havendo até aqueles que juram ter o grande artista passado por uma importante escola de música de São Paulo. Para contradizer essa versão, não falta quem garanta que Roberto Braga fez um pacto com o Romãozinho, do qual ninguém conhece os detalhes, para se transformar no grande músico que foi. Peço aos distintos leitores que me entendam e vejam que eu estou apenas relatando o que ouvi em diversos lugares. Não descarto a existência de outras versões que não conheço. Pode ser que em Carinhanha a história seja uma, em São Francisco outra, em São Romão mais outra e assim por diante.

Nunca mais ouvi falar de Roberto Braga. Assim como apareceu, sumiu coberto de mistério. O som do seu sax, tal como o vapor encantado, que aparece e desaparece na noite do rio, ressurge em minha memória quando eu menos espero.

O vale do São Francisco é assim mesmo, cheio de milagres e encantamentos.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Recado aos prefeitos

Palavras do feiticeiro de São Romão:

"O prefeito que não realizar obras de saneamento em seu município, deixando que o esgoto sem tratamento e o lixo sejam atirados nos rios e riachos, vai beber a água que o diabo sujou. Toda vez que encher um copo d´água para tomar, o tal prefeito verá boiando nele vermes e lodo. Esta previsão vale também para aqueles vereadores que forem omissos ou apoiarem o comportamento desses prefeitos".

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Recado do feiticeiro

O feiticeiro de São Romão ouviu por aí que os ruralistas estão se preparando para afrouxar as regras ambientais e assim poderem aumentar a destruição das florestas e rios. Ele manda o seguinte recado:
“Estou fazendo uma mandinga. Esse povo que vive de arrancar muita planta pra colocar no lugar uma planta só vai morrer como doido. A doidura deles é ficar repetindo as mesmas palavras, porque não conseguem se lembrar das outras."

Batalha ambiental no Congresso*

Bancada ruralista organiza-se para passar com trator por cima dos ambientalistas durante o primeiro semestre no Congresso. Ambientalistas organizam-se para barrar o ‘tratoraço’

Renata Camargo

Sob protesto de ambientalistas, os ruralistas prometem acelerar no Congresso mudanças profundas na legislação ambiental. Certa de que o ritmo do Congresso este ano será menor por causa das eleições, a bancada ligada ao setor agropecuário passou o período de recesso organizando-se para passar como uma patrulha de tratores por cima dos ambientalistas. Eles querem se aproveitar do fato de que já se organizaram previamente para, em 90 dias, alterar pontos polêmicos do Código Florestal. Será, segundo os próprios ruralistas, um ritmo de mudanças a “toque de caixa”.

Os ruralistas querem afrouxar regras do Código Florestal que, a despeito de proteger o ambiente, na sua opinião impedem a produção. Eles querem, por exemplo, retirar da lei a exigência de recomposição das áreas desmatadas para a consolidação das áreas de produção já existentes. Querem ainda descentralizar a legislação ambiental, permitindo que estados e municípios tenham regras próprias diferentes das regras da União para coisas como o tamanho das áreas de preservação nas margens dos rios. Os ruralistas defendem que sejam criadas reservas ambientais em biomas, e não mais áreas preservadas em cada propriedade.

“Se o Congresso tiver a coragem de fazer as mudanças, isso não vai ser difícil. Ano que vem, vai ter eleições e as pessoas vão querer saber de que lado os deputados e senadores estão. Precisamos estar do lado do conhecimento científico, sem paixões e achismos”, defende o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado Valdir Colatto (PMDB-SC).

Três propostas devem concentrar as atenções neste primeiro semestre no Congresso, na avaliação dos ruralistas. A principal será o relatório do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), que será elaborado na comissão especial de mudança do Código Florestal na Câmara. Também deve voltar ao debate o projeto conhecido como PL da Anistia, que propõe a consolidação das áreas agricultáveis, sem recomposição das matas degradadas.

A 'toque de caixa'
E o terceiro foco será o PLP 12/2003, aprovado em dezembro na Câmara, e que será apreciado pelo Senado. Ele é um exemplo do empenho da bancada ruralista em agilizar votações estratégicas para o setor. A proposta é antiga na Casa, data de 2003. O projeto, que fixa as normas de competência e cooperações entre entes da Federação, era uma das prioridades de ambientalistas no Congresso.

Em dezembro, no entanto, o PL foi aprovado na Câmara com emendas que contrariaram os interesses verdes. Uma delas restringiu ao órgão licenciador a competência de autuar por danos ambientais. Ecologistas afirmam que a emenda retira funções do Ibama, que fica impossibilitado de multar quando o órgão licenciador for estadual ou municipal.

“Colocaram isso para se livrarem de autuações do Ibama. Quando foi proposto pelo Sarney Filho [PV-MA], o projeto tinha como objetivo criar condições de cooperação entre entes federativos. Mas uma parte essencial dele se perdeu. Talvez o Senado possa recuperar a dimensão da cooperação e retirar pontos colocados de última hora”, avalia o coordenador do Programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA), Raul do Valle.

Os defensores do projeto argumentam que a possibilidade de mais de um órgão ambiental aplicar sanções pode provocar ações na Justiça por competências concorrentes. Segundo o senador Gilberto Goellner (DEM-MT), a intenção da bancada é aprovar o texto “a toque de caixa”, sem muito debate, para poder manter a redação da Câmara sem alterações.

“Eu sou favorável a aprovação do projeto como veio da Câmara. Já requeri a relatoria do mesmo na Comissão de Meio Ambiente do Senado. Precisamos ter convencimento das lideranças para que a gente aprove esse projeto a toque de caixa, com o texto que veio da Câmara. Precisamos flexibilizar a legislação de tal forma que os estados possam executar seus próprios planos de legalização dos imóveis”, considerou o senador Goellner.

Ajuda do governo
Por sua parte, os deputados ligados às causas ambientais também organizam-se para evitar o “tratoraço” planejado pelos ruralistas. Parlamentares que defendem interesses ambientais apostam em articulações junto ao governo para evitar mudanças drásticas. A tática, porém, pode dar errado: o governo também demonstra interesse em flexibilizar algumas regras ambientais para facilitar processos como o licenciamento de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

“A liderança do governo ignorou, mostrando que o meio ambiente não tem importância para o governo. Fontana, interessado na aprovação do pré-sal, permitiu que essa proposta passasse, mesmo sob protesto do próprio Ministério do Meio Ambiente. Enquanto isso, Lula fazia discurso em Copenhague”, acusa o líder do PV na Câmara, deputado Edson Duarte (BA), se referindo ao líder do governo na Câmara, Henrique Fontana (PT-RS).

Mesmo assim, os ambientalistas ainda apostam na sensibilidade do presidente Lula. Segundo Edson Duarte, uma das estratégias ambientalistas será buscar o apoio de Lula para que ele vete pontos contrários aos interesses ambientais aprovados no Congresso. O líder do PV aposta que este ano o governo será mais cauteloso em relação a temas ambientais, devido à presença da ex-ministra do Meio Ambiente e senadora Marina Silva (PV-AC) na corrida eleitoral pela Presidência da República. “Espero que o governo brasileiro não negligencie o tema e que tenha sensatez de perceber que será impossível cumprir as metas propostas em Copenhague se a legislação for flexibilizada”, considerou o líder do PV. “A presença de Marina Silva no debate eleitoral vai ajudar a sensibilizar o governo. Espero que Marina consiga sensibilizar, para que o governo ajude a frear essa corrida”, completou se referindo as tentativas ruralistas de mudar a legislação ambiental.

*Matéria publicada no jornal Congresso em Foco de 03/02/2010 (http://congressoemfoco.ig.com.br)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O feiticeiro de São Romão

O texto de Wilson Lins que está aí embaixo - Divindades, bichos e assombrações na ribeira - me inspirou a fazer algumas elucubrações.

1 - Se a cobra de asas da gruta de Bom Jesus da Lapa perdeu o poder de voar e, portanto, de aterrorizar, depois que tantos ofícios de Nossa Senhora foram rezados, como especula o autor, onde será que ela se meteu?

2 – Se os peixes do Velho Chico estão se acabando e as enchentes são controladas pelas barragens, quem é que vai precisar de adular o caboclo d´água para que ele ajude os pescadores e evite que a água inunde as roças?

3 – Quem é que tem medo do minhocão, se o rio está tão assoreado e raso que as embarcações quase já não conseguem navegar e nem correm o risco de serem afundadas por ele?

Pois é, meus amigos, muita coisa mudou neste mundão de Deus. Tive uma conversa hoje com um velho feiticeiro de São Romão, o que me deixou cabisbaixo e pensativo. Ele é mandingueiro das antigas, daqueles que inspiravam respeito e temor. Para vocês terem uma idéia, o velho ainda guarda uma cascavel viva dentro de um surrão que é utilizada em seus trabalhos de feitiçaria.

Com a voz grave e pausada, ele me disse em tom paternal:

- Meu filho, os bichos e as assombrações de hoje são outras e estão acabando com as antigas. Caboclo d´água, minhocão, cobra de asas, mula-sem-cabeça, pé-de-garrafa e outras aparições deste sertão velho estão perdendo a força. A divindade maior da atualidade no rio São Francisco é o grão de soja, que é pequeno, mas tem grandes poderes. É a soja que está mandando o homem destruir nossas matas, com tudo que elas têm. Por causa dela, estão sugando nossas águas e entupindo os rios e riachos, que também estão sendo envenenados. Qual é o caboclo d´água ou a mula-sem-cabeça que pode fazer uma coisas dessas?

Deixei a conversa com o velho feiticeiro sentindo uma enorme saudade do caboclo d´água.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Divindades, bichos e assombrações da ribeira

Wilson Lins

O vale do São Francisco é fértil em lendas e propício a crendices. O seu folclore é rico e colorido. Os seus "bichos", visagens e assombrações não têm, contudo, os requintes de perversidade dos lobisomens e papa-figos de outras regiões do país. Só a "cobra de asas" da gruta da Lapa é ameaçadora; os outros mitos ribeirinhos apenas assustam. Na geografia dos pavores infantis, os bichos da mitologia são-franciscana são os menos horripilantes, os menos malignos. Os bichos da noite, no vale, preferem brincar a fazer mal. A própria cobra de asas da Lapa já não oferece tanto perigo hoje como acontecia antigamente: depois de tantos anos de ofícios de Nossa Senhora rezados para que suas penas caiam, é de se esperar que a serpente já esteja completamente pelada.

São muitas as entidades míticas da beirada. A mais popular delas, sem dúvida, é o caboclo-d'água, baixo, troncudo, bela musculatura, pele bronzeada e olho no meio da testa. O caboclo-d'água é bem-humorado, mas às vezes faz das suas, provocando prejuízos e até mortes. Bem tratado, presenteado de vez em quando com uns pedaços de fumo para mascar, o caboclo se torna benfazejo, ajuda os seus obsequiadores nas pescarias, evita que o rio entre em seus roçados etc. Maltratado ou tratado com indiferença, no entanto, torna-se perigoso. Sua morada predileta é nos rochedos do meio do rio. Também habita os bancos de areia das ilhas submersas. É anfíbio, mas não gosta de se afastar muito do rio. Só sai da água para exercer alguma vingança ou fazer algum favor. Nunca um caboclo-d'água foi visto muito longe do rio. Ele se afasta, no máximo, cem metros do seu habitat.

Contam coisas assombrosas a seu respeito. Para muita gente, ele é um só e se é visto em vários lugares ao mesmo tempo, é por ter poderes para isso. No entanto, há no vale muitas pessoas que afirmam existirem vários caboclos-d'água. Para essas pessoas, a mãe-d'água também não é uma só e sim muitas. Dos mitos aquáticos do vale, o caboclo e a mãe-d'água são os mais solicitados. Mas ainda há o minhocão (ou surubim-rei), que é o rei do rio, mandando e desmandando em tudo, na vontade dos peixes e na vontade das águas. Na opinião de muitos, o minhocão é um surubim de mais de trezentos anos de idade, que de tão velho perdeu as barbatanas, ficou roliço e, enfurecido por isso, vive fazendo mal, virando embarcações, comendo os outros peixes, derrubando barrancos para estragar as roças dos beiradeiros. Do seu corpo roliço nascem os porcos d'água, pequenos e feios monstros, cabeça e patas dianteiras de porco e o resto do corpo de peixe. Nadam muito e são usados pelo minhocão para escavar os barrancos e matar as plantações marginais. Sempre que um minhocão morre de velho e outro surubim centenário o substitui no governo do rio, há a "mudança do reino". A corte é transferida para outro perau ou sumidouro ao longo do rio.

O caboclo-d'água, a mãe-d'água e o minhocão enchem de leves pavores noturnos a gente da beira do rio, mas não afligem em nada os moradores da caatinga e dos brejos, que, por sua vez, têm outros mitos a respeitar. Na caatinga e nos brejos do interior dos municípios, reinam a caipora, a mula-sem-cabeça, o Zé-capiongo, o fogo-azul, o pé-de-garrafa, a mão-pelada e o Romãozinho, um espírito travesso que tanto atua nas caatingas e brejos como dentro do rio, em pleno domínio do minhocão e do caboclo-d'água. As aventuras de Romãozinho dariam um livro. O Romãozinho vence o caboclo-d'água, tanto em peraltice como na popularidade. Não há, na beirada, quem desconheça as diabruras do diabinho que passa os dias apagando o fogo das cozinhas e à noite atira pedras nos telhados das casas.

Povoando as noites de sezão do beiradeiro, o caboclo-d'água, o minhocão e o Romãozinho enchem de brandos pavores a alma do vale. Nasceram com a sociedade pastoril ali surgida nos primórdios do povoamento do vale. Os marinheiros de Miguel Henrique e Pedro Rebelo levaram para o São Francisco, em 1550, as crendices européias que enchiam os mares de sereias, mas lá já encontraram, amedrontando o gentio supersticioso, os deuses da terra. Os espíritos da selva, misturados com os trazidos de além-mar pelos colonizadores, deram origem a uma mitologia colorida e que, à proporção que os anos passam, vai sendo enriquecida com outras contribuições de crendices e superstições oriundas de outras regiões do interior brasileiro. Caminho natural das populações do centro, o São Francisco foi recebendo e incorporando ao seu patrimônio mítico as lendas e os bichos noturnos de várias áreas do sertão. Daí o fato de encontrarmos, integrando o folclore e a mitologia da ribeira são-franciscana, versos, canções, lendas e "bichos" dos canaviais do Recôncavo baiano, das fazendas de gado de Minas Gerais, dos garimpos de Goiás, das caatingas de Pernambuco, dos cafezais de São Paulo, dos currais do Piauí e do aguaçal amazônico. Por força de sua condição de principal via de comunicação entre o norte, o centro e o sul, o São Francisco reúne em seu folclore um pouco de toda a mitologia brasileira, apresentando-se como um catálogo vivo das lendas e crendices do país. O minhocão do São Francisco e o seu caboclo-d'água são personagens símbolos de todas as sociedades lacustres, o mesmo acontecendo à caipora de suas caatingas, que é a mesma caapora de outros sertões, embora menos malvada. O próprio Romãozinho, que é a mais beiradeira das assombrações da beirada, tem seus pontos de contato com "espíritos malignos" de outras regiões do país. Aliás, bem observado, não existem, na realidade, grandes diferenças entre os vários mitos das diversas zonas do interior brasileiro: os nomes são diferentes, mas os "bichos" são os mesmos. O cabeça-de-cuia das águas do Parnaíba é o mesmo caboclo-d'água dos barrancos do São Francisco. A boiúna amazônica é irmã gêmea do minhocão são-franciscano. A unidade mítica do Brasil é um fato. E o rio São Francisco, que no período colonial constituiu um fator decisivo da unidade territorial da pátria em formação, exerceu, igualmente, uma grande influência na unidade de suas lendas, mitos e crenças populares.

Praga

Que tenha cem anos de atraso aquele que derrubar um pé de pequi.

Navegantes

Contador de visitas